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Quando fala a experiência (mesmo com canções de inocência)

A caminho de celebrar os 40 anos de vida, a história dos U2 já conheceu quase tudo o que havia a experimentar na forma de levar a sua música ao palco. Dos pequenos clubes (de tempos idos) aos estádios em que inventaram as visões Zooropa (expressão ao ar livre da mítica Zoo TV Tour) ou Pop Mart, passando por uma noite histórica em Red Rocks, uma atuação marcante no Live Aid ou uma digressão a explorar pontos de vista a 360 graus, a carreira “live” dos U2 foi desde cedo um alicerce da sua identidade. Estabeleceu relações presenciais, vincou qualidades performativas dos músicos. Mas, após a experiência que ficou documentada em Rattle & Hum, a ambição cénica subiu valentes patamares. E na hora de regressar à estrada, mesmo que entre os quatro músicos se resolva a execução das canções e a condução das ideias a lançar, há invariavelmente um pensamento sobre a relação da música com o espaço e as imagens. O filme da sua mais recente digressão (de 76 datas na América e Europa, com paragem mais próxima de nós em Barcelona) será para muitos de nós a forma de, uma vez mais, reconhecer a capacidade do grupo em reinventar essa mesma relação num plano que não procura apenas o deslumbramento de quem vê, mas que serve o conceito (do concerto e da história que quer contar).

Com o recente Songs of Innocence como mote, a Innocence + Experience Tour apontou azimutes a memórias, explorando sobretudo histórias dos seus dias de juventude, afinal os tempos de “inocência” a que o álbum aludia. Entre canções que traduzem ecos desses dias definiram um percurso onde se encaixaram também as outras que, num percurso discográfico que remonta a finais dos setentas, deles fez entretanto um caso de sólida e bem sucedida veterania. Ou experiência, se preferirem. Ao conceito pessoal a ideia do concerto juntou ainda olhares sobre o mundo do nosso tempo, mantendo (como há muito é tradição) um cunho reflexivo, seja para questionar comportamentos e posições políticas, seja para chamar atenção para causas humanitárias, chamando inclusivamente a presença da voz gravada de Stephen Hawking. E depois da banda sonora e das ideias, a forma. E contra a lógica (que vem de antigas experiências, do palco de ópera ao ecrã de cinema) de colocar o que acontece numa parede ao fundo da sala, a aposta, desta vez, foi a de levar os acontecimentos para o meio da multidão. Não apenas com banda e aparato de luzes (já o tinham feito, e em tempos Elvis e tantos outros também), mas pensando imagens para projeção numa estrutura arrumada longitudinalmente, atravessando toda a sala, quase de topo a topo. Uma “gaiola” com paredes ora transparentes ora transformadas em ecrã, um pouco como se o monólito do 2001 de Kubrick ali aparecesse, deitado, suspenso do teto.

O filme que agora fixa a memória desta digressão não só regista olhares sobre o palco, os ecrãs, os músicos, e todo um corpo de canções – nas quais as maiores novidades são mesmo um arranjo mais electrónico para The Fly ou uma versão de Ne Me Quittes Pas que se escuta a meio de City of Blinding Lights (e vale a pena notar que, além do álbum de 2014, Achtung Baby é o mais visitado entre os anteriores) – como guarda ainda a memória de uma ocasião que fez desta digressão e destes concertos mais do que apenas episódios marcantes na carreira dos U2.

Estava a banda em Paris, em residência de algumas datas na Accor Hotels Arena (ou seja, o novo nome para o velho pavilhão de Bercy), quando os atentados terroristas de 13 de novembro de 2015 tiveram entre as suas muitas consequências o cancelamento de uma atuação prevista para a noite seguinte, que seria filmada e transmitida pela televisão. Semanas depois, ainda com a cidade de feridas abertas, regressaram para dois concertos que serviram de ponto final à digressão. E que, como o próprio Bono chega a afirmar a dada altura, durante o concerto, esta é uma forma de enfrentar o medo. Não cedendo.

Rodado a 7 de dezembro de 2015, o filme do concerto, realizado por Hamish Hamilton, ganhou, pelo contexto, uma dimensão que transcende a do espaço de mero entretenimento. Ao entrarem em palco, ao som de People Have the Power (o hino de Patti Smith) e, depois, ao cantarem a mesma canção em conjunto com os Eagles of Death Metal, que atuavam no Bataclan na noite de 13 de novembro que, só naquela sala, contou 89 mortos, os U2 juntam assim o seu canto contra o medo a uma voz de resistência ao terror que tem neste filme um importante contributo. O fim da noite, já sem os U2 em palco, uma vez que o cedem totalmente à banda convidada, reforça ainda mais essa mesma ideia.

Pode haver uma ideia de inocência entre as memórias de algumas das canções e em parte do nome da digressão. Mas, felizmente, é tudo menos inocente a tomada de posição que os U2 aqui deixam bem clara.

U2
“Innocence + Experience Live in Paris”
Realização: Hamish Hamilton
DVD e Blu-ray Universal

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