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A identidade à flor da pele

Texto: GONÇALO COTA

“Negro Swan”, quarto álbum que Dev Hynes assina como Blood Orange, contempla o horizonte identitário do seu autor, através de um conjunto de canções nítido, mas dilatado nas formas, que abriga dentro de si múltiplos géneros e colaborações.

Negro Swan não é um epifenómeno na carreira musical de Blood Orange. Ou sequer um remoto isolamento da sua memória e da sua experiência como pessoa negra e queer – e é o olhar para este diálogo que alimenta, este, que é seu quarto álbum. É um lumiar de uma visão que vem a estabelecer como sua desde Cupid Deluxe, de 2013: o percorrer da memória individual, uma ferida que lateja logo à primeira faixa, Orlando (que invoca aqui a personagem do romance de Virginia Woolf, com o mesmo nome), e um expressar de descontentamento de um corpo coletivo que se habitua – até que ponto? – à devoração por parte de um meio social-cultural implacável.

Dev Hynes irrompe não somente para expressar a sua consciência, mas fá-lo com a clareza de que a melhor maneira de revisitar a sua memória é através da fragmentação – e no desafio de construir, a partir desses fragmentos, uma sensação permanente de complementaridade. Negro Swan não vive na sombra da reinvenção de como construir novas formas de abordar canção, mas na vontade de reconstruir uma experiência, fazer-nos imergir na sua intimidade, de forma hermética, e sentir todas as texturas da sua pele através de canções que parecem não funcionar de forma desagregada – aqui, Negro Swan, diga-se, é uma proposta muito semelhante a Seat At The Table, de Solange, na forma e no expressar desta vontade.

E fá-lo habilmente e forma inquietante. Aliando interlúdios (sendo Janet Mock, ativista trans, a narradora) a sons de trânsito, sirenes de polícia, ruídos e movimentação de pessoas – ecos de uma cidade -, que servem de alimento à teia musical luminosa, dispersa e quase sempre minimalista de canções quase sempre languidas e sensuais, que piscam o olho à pop R&B e ao jazz (Blood Orange assemelha-se muito à musicalidade de Sade) – mas que, a uma audição mais cuidada, não esquece as heranças funk ou gospel.

E nomes. Muitos nomes, que vão habitando a sua história, com as suas vozes, ao longo das 16 faixas – perfilando Kelsey Lu (que pudemos escutar entre nós, num fantástico concerto, na edição deste ano do NOS Primavera Sound), Tei Shi, A$AP Rocky ou Sean “Diddy” Combs. Mas a história também não parece singular: apesar do atípico combate à tenacidade do mundo com visões de ternura, delimite-se muito bem um perfil angustiado e melancólico, de uma autoconsciência de si e do mundo. Ainda assim, Blood Orange tem a capacidade extraordinária de reflorescer.

“Negro Swan”, de Negro Swan, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Domino ★★★★

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