Segredos e mentiras no império romano
Texto: RUI ALVES DE SOUSA
2015 já tinha sido o ano em que Ric Hochet regressara às livrarias com um novo e curioso álbum, criado por dois novos autores (editado entre nós com o título Descansa em Paz, Ric Hochet!). Blake e Mortimer é um caso de sucesso, que gerou um enorme culto graças às várias duplas que têm recriado as histórias de Edgar P. Jacobs. E Lucky Luke conseguiu rever a sua fama com uma nova geração de entusiastas, que renovaram o universo de Morris (aproveitando os altos e desprezando os baixos de uma longa listagem de aventuras desenhadas pelo autor original, e escritas por variados argumentistas, ao longo de décadas).
O regresso de Astérix já tinha causado sururu em 2013, quando surgiu Astérix entre os Pictos, primeiro álbum sem a participação de Albert Uderzo (um dos dois criadores da personagem que continuou a série após a morte do argumentista, René Goscinny). Era uma história ligeira, mas com mais interesse do que os últimos títulos da coleção, numa tentativa de recuperar a essência das aventuras de Astérix, Obélix e do inteligente companheiro canino Ideiafix.
Agora, e depois de um lançamento mundial que suscitou inúmeras reações da opinião pública (devido a supostas ligações com a Wikileaks e o mundo da comunicação social), já podemos ler o novo álbum de Jean-Yves Ferri e Didier Conrad, que está a ser um êxito. Chama-se O Papiro de César e a história é simples, mas muito acertada para a modernidade: Júlio César acabou de escrever um livro de memórias sobre a conquista da Gália. Um dos capítulos dessa obra aborda a questão da aldeia dos irredutíveis – capítulo esse que o conselheiro do imperador decidiu abolir para impedir má publicidade.
Assim, César parece dar a entender, no seu livro, que conquistou todo aquele país – e que ninguém se lembra desse pequeno povoado no meio do mundo romano. Até que o gaulês Gerapolémix decide “sequestrar” o capítulo roubado, com o objetivo de causar polémica em todo o império. Para isso, a pandilha habitual (mais o druida Panoramix) ajudará a que o manuscrito não se perca, preservando as suas palavras na tradição oral da cultura gaulesa – um boca-a-boca que, imagine-se!, chegou até aos dias de hoje…
Portanto, O Papiro de César fala de uma fuga de informação no ano 50 a.C? Sim, e lá pelo meio, o leitor ainda tem direito a um sem-número de gags imperdíveis, a críticas muito inteligentes, e ao regresso de vários bordões tão característicos do universo de Astérix. Voltamos aos bons velhos tempos, a um mundo tão original quanto sedutor, que continua a encantar miúdos e graúdos, num grande álbum de BD que mostra que é possível continuar e renovar um ícone da cultura popular.
O veredicto deste 36.º álbum é, assim, muito favorável. Há muito tempo que não líamos Astérix com tanto gozo. Mais exatamente, desde o último tomo que os dois autores originais do universo gaulês criaram em conjunto (ou seja, Astérix entre os Belgas). A partir daí, o genial René Goscinny deixou a sua personagem entregue ao homem que lhe deu forma, Albert Uderzo. O desenhador tentou continuar essa empreitada, mas desde O Grande Fosso (primeiro álbum assinado a solo) até ao desastre monumental O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça, mostrou que não conseguia mais do que uma cópia menor da fórmula que resultou tão bem, em mais de uma vintena de álbuns, graças a Goscinny (um dos mais brilhantes humoristas do século XX, e que os especialistas na matéria tendem a desprezar).
Uderzo nunca soube aproveitar as pistas da essência da série, tal como deixou de parte os pormenores que fizeram a diferença nos grandes clássicos da série (como o extraordinário A Zaragata). Divertiu-se mais com o poder do seu traço e desprezou outro poder, o da escrita e da simplicidade espantosa do método goscinniano. Faltou-lhe sempre a imaginação inerente ao escritor e seu antigo colega de aventuras criativas, autor desta e de muitas outras espantosas criações e sátiras (desde a aldeia dos gauleses até a uma passagem prolongada pelo universo de Lucky Luke, e ainda, as histórias hilariantes do Menino Nicolau, ilustradas por Sempé).
É então revigorante encontrar em O Papiro de César um regresso ao melhor do universo de Astérix: o humor irreverente, as subtis ligações à atualidade, o carisma das personagens (que são mais do que simples bonecos, algo que Uderzo nunca conseguiu compreender muito bem), e um amor às histórias e ao imaginário de milhões de leitores. Este novo álbum não é só uma justificação para retirar mais lucro da marca Astérix: tem um propósito inteligente e ajusta-se a todas as gerações, proporcionando um encanto intemporal que tão bem caracteriza a maioria das personagens da era de ouro da BD franco-belga.
Ferri e Conrad já tinham dado provas de talento e criatividade em Astérix entre os Pictos. Mas com O Papiro de César foram mais longe, corrigindo os problemas de construção do álbum anterior. Aqui fizeram uma bela história em BD que recupera os valores e mecanismos clássicos da série, sem os reciclar ou simplesmente “homenagear”. A aldeia dos gauleses continua a ser, por isso, irredutível, e o filão (ou de outra forma, a poção mágica) da eficácia de Astérix está longe de se esgotar.
“O Papiro de César” foi publicado no nosso país em duas edições distintas, uma em português e outra traduzida para mirandês, pelas edições ASA.

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