Cenas da luta de classes na Coreia do Sul
Texto: Nuno Galopim
Este ano, em Cannes, os jornalistas que assistiam à sessão de apresentação do mais recente filme de Quentin Tarantino foram colocados perante um pedido: o de que dessem aos seus leitores a mesma capacidade de viver a surpresa da descoberta do filme tal e qual eles ali a iriam viver… É claro que não há pior do que o ‘spoiler’ para “estragar” o momento da descoberta de uma narrativa. Mas quem depois viu o filme entendeu o porquê de tão explícito alerta. Um mesmo cuidado deve habitar a escrita de apresentação de qualquer filme, é verdade. Mas há casos em que, a bem da experiência que potencialmente está guardada nesta ou naquela narrativa, saber pouco é estar mais bem preparado para a receber. E “Parasitas”, de Bong Joon-Ho (o mesmo de “The Host – a Criatura”), que merecidamente saiu de Cannes com a Palma de Ouro, é um exemplo de como não há como ir para a sala com pouco mais do que um esboço do que ali pode esperar… E por isso mesmo, além de aqui deixar claro que estamos perante um dos filmes do ano, vou na verdade contar pouco sobre este filme.
Em traços muito vagos “Parasitas” coloca-nos no universo de duas famílias sul-coreanas. Uma, no limiar da pobreza, vive numa cave e tenta sobreviver dia após dia, ora dobrando caixas para uma pizzaria, ora tentando usar o wi-fi dos vizinhos para ver se há mensagens no WhatsApp… A outra habita uma luxuosa e espaçosa moradia desenhada por um arquiteto que a projetou como sua casa. A evolução da história vai juntar as duas famílias. E como? Um após um, os quatro elementos da família “à rasca” vai encontrar trabalho na moradia dos “ricos”. E o que começa por parecer uma comédia de costumes com um toque assombrado vai ganhar outros tons e conhecer inesperados destinos. E aqui mais não digo.
Apesar das voltas e reviravoltas que a história irá tomar encontramos aqui um filme que, sobretudo, fala sobre disparidades sociais e, concretamente, a velha (mas ainda bem atual) luta de classes. Há no âmago de “Parasitas” um jogo entre quem, literalmente, vive por cima e quem está por baixo… No fundo uma nova variação da mesma ideia que em tempos fez história entre nós com “Upstairs Downtairs” (que passou em tempos na RTP como “A Família Bellamy”). Acontece que “Parasitas”, tal como o recente “Shoplifters” de Hirokazu Koreeda (que pode aqui sugerir algumas afinidades) não é uma memória de época, de outros tempos e outras vivências culturais. É uma história de hoje. Aguda, intensa, cortante (e com marcas de geografia e história que sublinham a sua origem no tempo e no lugar). O que deixa no ar a questão… Então isto mudou ou nem por isso?
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