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Um segredo quase esquecido para (re)descobrir na música do Brasil

Texto: NUNO GALOPIM

Natural do Paraíba, Fernando Falcão (1945-2002) viveu anos de exílio entre 1969 e 1984. E foi em Paris que, em 1979, gravou um primeiro disco que seria editado em 1981 no qual se cruzavam ecos da música popular e visões exploratórias. Esse e um segundo álbum, de 1987, revelam agora um tesouro quase esquecido da música brasileira.

O cinema tratou já por diversas vezes aquela sensação, com sabor à vertigem da descoberta, do achar de cidades perdidas ou comunidades desconhecidas. É claro que a obra do músico brasileiro Fernando Falcão (1945-2002) não era um segredo absoluto… Dos três álbuns que lançou um deles (o primeiro) tinha-se tornado já uma preciosidade procurada entre colecionadores, com vendas a ultrapassar os 300 euros na plataforma Discogs…

Há dois anos uma compilação que escavava memórias menos citadas da música brasileira – “Outro Tempo – Electronic and Contemporary Music From Brasil 1978-1992” – lançada pela editora Music From Memory incluía no seu alinhamento o tema “Amanhecer Tabajara (à Alceu Valença)” de um tal Fernando Falcão que, para muitos, seria então um nome talvez nunca até então escutado… Há sempre um gatilho para um acontecimento. E é bem possível que o impacte da (re)descoberta desse tema do álbum de 1981 “Memória das Águas (o tal que era já disputado entre colecionadores) tenha desencadeado o processo de reedição dos dois primeiros discos de Fernando Falcão que, agora, assinalam um dos acontecimentos maiores do panorama editorial de 2019.

Um pouco de história primeiro. Natural de Fernando Pessoa (no estado do Paríba) em 1945, Fernando Falcão viva em São Paulo quando a ditadura militar tomou as rédeas do país. Conta-se que terá colocado uma bomba numa escola privada em 1968, acabando o irmão por ajudá-lo a partir para outro lugar. Mudou-se para Paris, iniciando um exílio que duraria até 1984 e durante o qual conheceu figuras e artistas que o marcaram. Ali chegou já com talento como percussionista. Mas foi de uma parceria que desenvolveria depois com o sogro – o artista plástico François-Xavier Lalanne – que brotaram possibilidades de exploração de novos sons e formas.

Criou instrumentos – como o balauê, uma versão do berimbau – e com eles imaginou uma música que desenhava espaços onde, mesmo distante, o Brasil não deixava nunca de emergir de forma evidente. Fez música para teatro, para cinema (chegou a colaborar com Bertolucci) e em 1981 estreou-se nos discos com “Memória das Águas” um álbum pelo qual lança visões que brotam como cenografias e ambientes e se desenvolvem ora com a presença de instrumentos de orquestra ora com gravações de campo, sons de garrafas, percussões ou um coro, numa construção que vinca uma identidade que não esquecia os ecos de onde partira há anos. Viaja-se ali para lá das fronteiras da música popular e da música de vanguarda… Entrelaçando sons, cruzando formas, como duas correntes de água que se juntam e diluem depois entre si.

Um texto publicado na altura, pelo jornalista brasileiro Sérgio Vaz notava ali a presença de África, do nordeste, do jazz, da música erudita. E como ele mesmo notaria num outro texto, em 2010, o seu equívoco foi o de ter então imaginado que Fernando Falcão deixaria em breve de ser um nome desconhecido. Será desta?…

Gravado num estúdio parisiense em 1979 o disco seria editado pela independente Poitou em 1981. Seis anos depois, e já de regresso ao Brasil, Fernando Falcão lançou pela Carmo o álbum “Barracas Barrocas” no qual dá continuidade à sua atitude exploratória porém sob olhares com linhas mais definidas, tecnicamente mais polido nas artes finais, mas nem por isso menos surpreendente, juntando assim mais um episódio de puro encanto a uma das obras musicais mais desafiantes e belas da música brasileira.

Reeditados agora pela Selva Discos os álbuns “Memória das Águas” e “Barracas Barrocas” são velhos tesouros (quase) perdidos que agora podemos (re)descobrir e saborear. E acreditem que pouca música que irão escutar ainda este ano terá esta tamanha carga de surpresa e familiaridade concentrada em si.

“Memória das Águas” e “Barracas Barrocas” estão disponíveis em nova edição em LP pela Selva Discos.

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