A estrela negra de David Bowie é a que mais brilha
Texto: NUNO GALOPIM
Desta vez foi diferente, sem a surpresa a acordar-nos na manhã do seu aniversário. O dia do mês é o mesmo: 8 de janeiro. Mas ao contrário do que havia acontecido em 2013, quando o mundo despertou nessa manhã descobrindo que havia uma nova canção de David Bowie e que um álbum novo chegaria e março (gravado durante dois anos em Nova Iorque, em plena era do microblogging e sem que ninguém desse por isso), agora, três anos depois, a certeza de que o hiato de dez anos de silêncio que se seguira a Reality é caso arrumado chega com um novo disco do qual começámos a juntar peças aos poucos e que revela aquele que é o seu álbum mais inventivo desde os tempos em que a cidade de Berlim era associada aos seus discos (se bem que na verdade só Heroes lá nasceu por inteiro).
Começámos na verdade a descobrir Blackstar (o correto seria escrever ★ ) ainda em finais de 2014 quando, como sinal de vida ativa num momento em que lançava uma antologia que cobria 50 anos de carreira, David Bowie se juntou à orquestra de Maria Schneider para gravar duas novas canções que desafiavam a lógica habitual de tempo da canção pop, procurando formas de diálogo entre a sua linguagem e ecos do jazz para nos dar algo de completamente diferente em Sue (or in a Season of Crime) e ‘Tis a Pity She’s a Whore. O single saía num dez polegadas em vinil, sem mais nem menos informação sobre se era caso isolado ou matéria a lançar futuras reflexões. O jazz não era novidade, note-se, na carreira de Bowie e basta regressarmos por exemplo a momentos de Aladdin Sane, Black Tie White Noise ou Reality para notarmos a sua presença em discos anteriores. E o saxofone, que se afirmava aqui com maior protagonismo do que o habitual é, na verdade, o instrumento de raiz de David Bowie. Foi o primeiro que a prendeu a tocar, e com o qual figurava nas fotos da sua primeira banda: os Kon Rads, em 1962. A ideia da canção longa por si só não era também uma estreia na sua obra, e o tema título de Station to Station serve disso de exemplo. Mas a verdade é que entre estas duas novas canções Bowie contava os seus 50 anos de discos com peças que, da composição aos arranjos e interpretação, o levavam a um novo espaço de experiências. E depois de um The Next Day essencialmente focado em revisitações de ecos das suas vivências rock (dos dias de Ziggy Stardust aos de Scary Monsters havia dali sinais de diversos tempos), o single de 2014 deixava no ar a ideia de que Bowie não se contentava em viver um presente apenas habitado por memórias. Estava a pensar novos caminhos. E se os encontrasse não caberiam num single.
Assim era. E há algumas semanas, com a surpresa mais projetada nas qualidades musicais da canção do que no facto de ela existir, o tema-título do álbum emergiu inicialmente num teaser associado à série televisiva da qual faz o genérico. E, pouco depois, um brilhante e inquietante teledisco revelava o corpo de uma extensa peça de dez minutos, mostrando uma canção em várias partes, e na qual ao desafio das novas formas (uma vez mais assimilando ecos do jazz) se juntava também um certo classicismo, sobretudo na sequência de tonalidades mais românticas que faz a parte central da canção e todo um sentido de teatralidade que, há muito reconhecemos como uma das artes por si dominadas e que a sua música por várias vezes assimilou. Juntando elementos de um labor rítmico que lembramos dos discos que criou em meados dos anos 90, a canção trazia mais uma vez um traços de uma certa familiaridade num todo que, mesmo assim, era sobretudo um terreno novo.
Com Lazarus, que surgiu como o aperitivo seguinte, a confirmar as tonalidades sombrias que por esta música passavam – vincando a estranheza igualmente pelas figuras e gestos do novo teledisco de Johan Renck lançado um dia antes da chegada do álbum – ficava mais claro que a busca da novidade não apagava de facto as expressões de marcas de identidade de uma carreria que caminhou já por muitos outros terrenos.
Blackstar, com apenas sete canções – entre as quais duas regravações consideravelmente diferentes das reveladas em 2014 de Sue (or in a Season of Crime) e ‘Tis a Pity She’s a Whore, com Donny McCaslin a gravar as partes de saxofone, que no single tinham sido registadas por Bowie – revela de facto uma pulsão experimental como Bowie levou já a vários momentos da sua obra mas que não se manifestara tão evidente nem mesmo em 1.Outside (de 1995).
É contudo um álbum que encontra formas de levar todo este conjunto de novos ensaios e ideias (e entre os quais os elementos jazzy vão em busca de Bowie e não o contrário, como se escuta em I Can’t Give Anyhting Away) a um terreno de relativa acessibilidade (Girl Loves Me é quase Bowie vintage e Dollar Days, se não fosse o arranjo com o saxofone em evidência, poderia ter surgido nos seus dois primeiros discos pós-milénio), as presenças algo fantasmáticas de ecos do passado somando-se à voz de Bowie e a um melodismo do qual não prescinde para, em conjunto, criar o disco talvez mais afastado dos cânones pop/rock que alguma vez nos mostrou. Mas até nesse desejo em escapar para lá das formas instituídas ele já tinha operado antes, seja quando em 1967 se estreou em álbum com um disco mais próximo de heranças do teatro musical britânico de outros tempos que dos caminhos que o rock talhava por aquela altura ou quando, em Low (1977) guarda toda a face B do disco para experimentar caminhos ambientais essencialmente desenhados com novas ferramentas electrónicas.
Gravado com uma nova banda, chamando alguns convidados a estúdio (entre eles James Murphy) e voltando a desafiar Tony Visconti para produzir o disco, Blackstar abre 2016 em alta, com aquele que é um dos melhores discos da obra de David Bowie.
David Bowie
“Blackstar”
ISO Records / Sony Music
5 / 5


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