A escrita por escrever
TEXTO: JOÃO LOPES
Augúrios. Presságios. Pressentimentos. Palavras que se escrevem para tentar suprir a perturbação das palavras ausentes, porventura para sempre inacessíveis.
A obra poética de Patti Smith nasce dessa contradição sem nome em que a sublime urgência da escrita — a fala só vem depois — confessa a transcendência do seu impossível. Em Auguries of Innocence (Harper Collins, 2005), num poema em prosa, a que também podemos chamar prosa em poema, intitulado ‘Eve of all saints’, Smith evoca mesmo esse símbolo descarnado, poético como poucos, do “escritor que não escreveu” — The writer who did not write moved by feel alone, was eaten by his words, by drink, his own hand casting a line, drawing empty river.
Dir-se-ia que esta poesia que não nasceu para ser cantada se expõe já envolvida por uma música secreta, impossível de escrever, apenas audível se soubermos abandonar a ilusão de que o mundo precisa de um sentido para ser habitado. Há qualquer coisa de tão íntimo nos seus gestos que tememos não saber lidar com a hipótese de um incestuoso segredo. Num verso de abertura, Smith escreve mesmo: “Ele era um rapaz de pedra adivinhado pela sua irmã” — o poema chama-se O oráculo.

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