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Dawn Richard: fora de órbita

Texto: JOÃO MOÇO

Depois do regresso (e separação) das Danity Kane e do afastamento do produtor Druski, Dawn Richard volta à sua trilogia em nome próprio com o segundo capítulo, ‘Blackheart’.

No outro dia fazia uma busca no YouTube por um dos novos vídeos de Dawn Richard e apareceu logo nas sugestões laterais FKA Twigs, com repetidas opções. É curioso que Dawn não mereça o mesmo mediatismo crítico que Twigs, quando muitas das assunções elogiosas feitas a esta última teriam uma dimensão mais realista se servissem a primeira. Não que a cantora norte-americana necessite dessa reverência crítica para se fazer valer, mas o facto de se continuar a prender a sua obra a uma narrativa que não vai além da sua presença nas Danity Kane e da associação a Sean “Diddy” Combs no projecto Diddy-Dirty Money, além de se encarar esse passado como uma justificação para a sua desvalorização, só ajudam a perpetuar este estado semi-comatoso a que o r&b tem sido vetado nos últimos anos, com pontuais excepções relevantes a conseguirem furar o seu próprio círculo de acção.

Desde os tempos das Danity Kane, a girl band criada por Diddy no programa Making the Band, que Dawn Richard se destacava de todas as outras. As suas valências tornaram-se ainda mais visíveis ao lado de Kalenna nas Dirty Money, servindo ambas de contraponto à narrativa conceptual (mas nada linear) de Diddy que desembocou nessa obra maior que é Last Train to Paris (2010), disco absolutamente fascinante no seu arsenal sónico assente no r&b e na sua associação a muitas músicas de dança.

Ainda que confesse que “música de dança” seja um termo algo facilitista e com pouca substância real por trás do imaginário sonoro imediato que ele transmite ao ouvinte/leitor, a verdade é que desde o início da sua aventura a solo que Dawn Richard tem mantido esse flirt com uma paleta de géneros associados à pista de dança. Daí que o seu segundo álbum, o recente Blackheart, tenha, na primeira semana de lançamento, chegado ao topo da tabela de vendas do iTunes na categoria de música electrónica (outra terminologia igualmente imbecil) e não de r&b.

Este aparente distanciamento do género musical onde tem trilhado o seu idiossincrático percurso não passa disso mesmo, de uma aparência, já que mesmo que não adopte uma postura tradicional ou de reverência para com as convenções do r&b (ou até da canção pop no seu sentido mais lato) isso não leva Dawn a transformar a sua obra num fetichismo que a intelligentzia indie gosta de apelidar como “o futuro” seja lá do que for, tendo sido precisamente essa institucionalização da música que tem elevado vozes menores como FKA Twigs ou Kelela a um estatuto crítico que renega para segundo plano de atenções quem não entra nesse contínuo ideológico.

O início de Blackheart deixa logo evidente a singularidade da ex-Dirty Money. Se em Black Lipstick (canção do EP Armor On, de 2012), Dawn Richard e o parceiro de produção de então, Druski, já se apropriavam da rítmica do jungle, agora em Calypso (canção que se segue à intro deste novo álbum), a cantora, ao lado do produtor Noisecastle III, aprofundam ainda mais essa ligação, estabelecendo ainda pontes com o juke (daí que já tenha lido por aí uma possível associação estética à Planet Mu), numa faixa polirrítmica que ainda tem tempo para samplar o tema genérico de Twin Peaks, onde a voz de Dawn só se ouve de forma tangível passados três minutos de muitas manipulações vocais.

Curiosamente, o primeiro embate que tive com Blackheart é semelhante ao que tive em plena adolescência com a série criada por Mark Frost e David Lynch. A envolvência criada por aquela história em torno do mistério de Laura Palmer não atenuava a inicial confusão mental e emocional proporcionada pelo imaginário alimentado pela dupla Frost/Lynch. No entanto, no que diz respeito ao disco de Richard, ultrapassada essa sensação de quase anarquia perante uma produção tão intricada, torna-se percetível que no final resiste aquilo que realmente interessa: as canções e a sua riqueza melódica.

Ainda assim, depois de uma obra monolítica como Goldenheart (o primeiro capítulo de uma trilogia que chegará ao fim no próximo ano), em grande parte deste Blackheart Dawn Richard liberta-se de vez de quaisquer convenções pop. Um dos factores mais surpreendentes é o trabalho de produção desenvolvido por Dawn e Noisecastle III. Passado praticamente um mês desde que ouvi o disco pela primeira vez e deste me ter acompanhado a um ritmo quase diário, continua a ser intrigante a quantidade de ideias transpostas nos beats, que estão em permanente transmutação, mas tendo cada pormenor sonoro o espaço necessário para respirar na canção, possibilitando que também eles contem a história de instabilidade emocional desenhada por Dawn. A secção que começa em Swim Free (o momento de maior contenção do disco, onde a interpretação contemplativa alia-se na perfeição à melancolia da linha melódica de um vibrafone processado), passando por Titans, Warriors, uma balada inicial que a meio se deixa transformar por uma aura ritmíca tropical que desemboca na ambição com toques new age de Projection, é exemplificativa de como no disco cada canção se encadeia na seguinte de uma forma orgânica.

O mote para a referida instabilidade é dada logo na intro do álbum, Noir, quando a cantora canta “I thought I lost it all”. Um verso que não é inocente e que certamente não é alheio a este último ano periclitante no delinear do seu percurso. Desde o desentendimento com o produtor Druski (com quem trabalhava há três anos), ao inusitado regresso (e a sua rápida e tumultuosa separação) das Danity Kane (cujo último álbum está longe de ser dispensável), passando pela morte da avó e do adoecimento do pai. Daí que também a nível vocal a cantora tenha alargado em muito o seu espectro de acção, intensificando a riqueza interpretativa de cada canção.

Numa entrevista que Dawn deu à webzine The Quietus há dois anos afirmou que Björk era a sua “vocalista favorita de todos os tempos”. A sombra da islandesa sente-se, precisamente, na maior amplitude vocal explorada em Blackheart. O sussurro que dá o arranque ao interlúdio (que é muito mais que isso) Titans, e a forma como esse pormenor vocal é explorado com a produção de estúdio como se de um corpo orgânico se tratasse, recorda-me a Björk de Vespertine (2001) e Medúlla(2004), antes desta se ter perdido em ambições conceptuais sem sustento.

Tanto a nível harmónico como melódico o alinhamento deste Blackheart segue um carácter quase vulcânico que segue de par em par com as interpretações de Dawn (cuja voz se alia intimamente a cada produção, sem nunca a renegar para um patamar de mero enfeite) e da sua história, que começa com o desarmante “I thought I lost it all” e que no final atinge a muito desejável confiança individual – oiça-se Choices, na qual canta repetidamente os versos “If I had to choose, I would never lose, I choose me” – interlúdio que antecede a confessional The Deep, balada ao piano cujo refrão resume na perfeição as ambições e a persona de Dawn Richard, independentemente do contexto em que se encontre: “I took it to the deep because my heart doesn’t swim in shallow creeks”.

Ter começado este texto referindo-me ao défice de análise crítica de Dawn Richard não é uma tentativa de imposição de um confesso fã da cantora. Mas apenas a constatação de que uma obra desta dimensão e riqueza merece muito mais atenção daquela que tem tido. Blackheart é o disco que pode alterar este cenário. Para já, eleva Dawn a um patamar que dificilmente arranja par no actual contexto r&b.

Dawn Richard
“Blackheart”
Our Dawn Entertainment
5/5

Siga estes links para ver os telediscos extraídos deste álbum:

http://www.youtube.com/watch?v=4TGrh-5Mnjw

http://www.youtube.com/watch?v=FszEaxrHGTs

http://www.youtube.com/watch?v=DPJMxz-ZoRY

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