Histórias alternativas nos tempos da revolução francesa
Texto: NUNO GALOPIM
Uma extensa campanha de revitalização do Palácio de Versalhes tem promovido, nos últimos anos, não apenas soluções de museologia entre os espaços do complexo – que envolve ainda os jardins, os dois Trianons e algumas estruturas em volta – mas também uma série de manifestações que cruzam outras formas de criação artística e comunicação. O músico catalão Murcof, por exemplo, foi convidado a criar uma obra site specific (para apresentação nos jardins) e que, cruzando ecos das músicas (e sonoridades) dos tempos de Lully e outros compositores ao serviço da corte ali instalada, editou depois em disco como The Versailles Sessions. Sofia Coppola recebeu autorização para filmar algumas sequências de Marie Antoinette em interiores. Uma revista trimestral – Le Chateau de Versailles, de que já falámos aqui – ensaia um novo modelo de comunicação como nenhum monumento específico até aqui usara. E, entre outras iniciativas, uma série de BD começou ali a nascer.
Com argumento de Éric Adam e Didier Convard e desenhos de Éric Libergé, a série foi inaugurada com Le Crépuscule du Roy, ao qual se seguiu o mais recente L’Ombre de Marie Antoinette. Este último coloca um pintor norte-americano – mas com genealogia que o liga a França aos tempos da revolução – como protagonista de uma narrativa que estabelece uma inesperada ponte no espaço-tempo entre o nosso presente e os tempos da revolução francesa. A atração que sente por um quadro que lhe é mostrado em visita às reservas da coleção de pintura em Versalhes acaba por ser o gatilho para uma viagem no tempo, transportando-o para maio de 1789, quando os Estados Gerais se reúnem, mas levando consigo o desejo de salvar, sobretudo, a rainha. Apesar de atropelar um paradoxo maior das narrativas de viagem no tempo (e aqui não vou fazer o spoiler da coisa), não é aí que a narrativa conhece o seu calcanhar de Aquiles, uma certa secundarização do que poderia ser um conhecimento de causa maior que o futuro lhe daria sobre o passado sugerindo uma oportunidade perdida numa história que prefere centrar-se na trama de ação e romance que também convoca.
L’Ombre de Marie-Antoinette não é curiosamente o único álbum de BD recente a evocar a figura da rainha que, por razões históricas, acaba por ser personagem também evocada no célebre O Caso do Colar, de Edgar P. Jacobs, um dos últimos volumes por si assinados da série Blake & Mortimer. La Nuit des Tuileries, de Fred Duval e Jean-Pierre Pécau, com desenhos de Florent Calvez, é um caso de história alternativa… Como de resto o são todos os volumes da série Jour J.
E se Luís XVI e a família tivessem escapado e a monarquia sobrevivido? Este é o ponto de partida para um livro que se integra nesta mesma série que imaginou já um cenário de chegada dos russos à Lua ou de capitulação francesa em 1917. Criada por Duval, Pécau e ainda Fred Blanchard (que neste volume colabora no argumento e assina a capa), a série tem neste volume um exemplo inteligente de como se podem modificar o curso da história pela alteração de um episódio, não descuidando nenhum dos peões em jogo. A história arranca com a fuga da família real das Tulherias em 1971 (algo que fracassou por carruagem mas que, aqui se faz antes por balão… e com sucesso). O rei é atingido por uma bala e perde a vida no campo (e não na guilhotina), acompanhando a história um jogo de movimentações, que envolve figuras como as de Danton, Robspierre, Vidoq, ou o conde Fersen (que é dado como o possível pai do filho da rainha), com o fim de devolver o trono ao jovem Luís XVII (que na verdade nunca foi rei, perdendo a vida também durante os tempos da revolução). La Nuit Des Tuileries ilustra um período entre 1791 e 1795, doseando bem as relações entre os factos reais e as suas transformações a partir do ponto de divergência das linhas do tempo. Bom cuidado também na reconstituição história dos cenários que acolhem as personagens… Está aqui uma bela ideia para um bom filme…
‘L’Ombre de Marie-Antoinette’
Adam, Convard e Libergé
Château de Versailles / Glénat, 48 págs.
ISBN 978 2 7234 9251 5
‘La Nuit des Tuileries’
Duval & Pécau e Calvez
Delcourt, 64 págs.
ISBN 978 2 7560 2751 7

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