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Quando um desenho incomoda muita gente…

Texto: NUNO GALOPIM

O filme ‘Os Cartoonistas’ propõe um olhar à escala global sobre a caricatura política, reparando como assusta sobretudo as ditaduras e autocracias. O filme lança um debate a ter lugar hoje às 15.30 no Salão Ideal.

Até parece fácil… Uns olhos, uma testa, umas gotas de suor, porque “como nunca se sabe se vai ganhar” está sempre em tensão… Com meia dúzia de traços rápidos é assim que Plantu, caricaturista francês – que publica no Le Monde – explica como faz o seu François Hollande. Mais adiante, numa aula, mostra como rapidamente chegou também ao seu Sarkozy, sugerindo uma figura de estatura mínima… E com moscas à sua volta. Moscas que chegaram a gerar telefonemas de incómodo. Porquê as moscas? São afinal marcas de uma forma de sátira política que faz dos caricaturistas peças tão importantes numa sociedade como os comentadores que falam ou escrevem. São também eles críticos do poder e dos poderosos. E, como se vê bem em Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, são particularmente temidos quando o poder não anda de braço dado com a democracia.

O recente atentado contra a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo colocou o seu trabalho no centro das atenções. Apesar de ausente do corpo deste documentário de 2014 – o que dá conta da dimensão algo marginal que o jornal tinha no próprio mundo maior da caricatura política – o Charlie Hebdo estará naturalmente na nossa memória ao vermos este mapa mundo de desenhos, ideias e críticas, escutando profissionais, histórias do seu trabalho e de como o poder com ele se relaciona.

O regime de Hugo Chávez não gostava de o ver em caricaturas (e chegou mesmo a proibir a sua representação), apesar da sua imagem oficial estar bem visível, como nota uma caricaturista venezuelana, em todas as obras públicas que foi edificando. Na URSS dos tempos da Perestroika, um caricaturista foi chamado pela agência oficial TASS a fazer um cartoon que, disseram-lhe depois, não seria para publicação interna, mas para “mostrar ao mundo que ali havia uma democracia”, explica o autor do desenho, que nota como com Putin o país regressou aos dias dos regimes autocráticos. Um “czar”, chama-lhe.

O filme, de Stephanie Valloatto, é quase um mapa-mundo da caricatura política, ilustrando casos em França, Dinamarca, Argélia, Tunísia, Israel (escutando aqui um israelita e um palestiniano), Rússia, China, Costa do Marfim, Burkina Faso, EUA, México e Venezuela. Vive de entrevistas, de olhares sobre os desenhos, os contextos em que nascem e nota como certas características culturais locais por vezes moldam formas de abordar os assuntos. A dada altura, o caricaturista israelita – de ascendência belga – repara como os desaparecimentos de Arafat, Sharon ou o fim do mandato de George W. Bush o deixaram quase perdido, temendo não ter tão bons temas sobre os quais fazer a sátira.

Mais que um abc da caricatura e um rastreio mundial – faltam aqui, por exemplo, os países do médio oriente – Os Cartoonistas é uma reflexão bem documentada sobre o poder do desenho como voz política. Uma expressão cuja liberdade é tão importante de garantir e de defender como a da escrita ou a do comentário a viva voz. Até porque, como a dada altura se refere no filme, o desenho é uma linguagem universal. Não carece de tradução e sabe assim falar para tudo e todos.

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