Como se fosse um fado
Texto: NUNO GALOPIM
Se o realizador Andrei Zvyagintsev concorresse este ano a um apoio estatal para fazer um filme com um argumento semelhante ao de Leviatã talvez não tivesse sorte. É que mesmo tendo sido o realizador escolhido para representar a Rússia na categoria de Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares – com este Leviatã, é certo – a lista de temas aprovados pelo Ministério da Cultura russo para justificar o seu investimento em cinema não comporta o “assunto” ou, pelo menos, a forma como é abordado. Lista onde se destacam temas como a representação dos espaços da Crimeia e Ucrânia no grande mapa da história russa, as vitórias e os vitoriosos do esforço militar russo, os aniversários da revolução de 1917 e do golpe de 1991, os valores da família como fundadores da sociedade ou a visão da Rússia como uma nação multiétnica (segundo reportou o Guardian). A corrupção surge referida entre os temas escolhidos, mas num ponto de vista que sugere antes o retrato de “heróis na luta contra o crime e a corrupção”. Acontece que o protagonista de Leviatã é tudo menos um herói. Mais um candidato a eventual derrotado. E é mais a corrupção que luta contra si que o contrário…
Apesar de geográfica e temporalmente colocada no presente, no litoral norte da Rússia, a narrativa que descobrimos em Leviatã nasceu de estímulos nada russos. Em primeiro lugar a história de um cidadão americano que, dono de uma pequena loja num terreno desejado por uma fábrica de cimento, viu a sua propriedade ser envolta por um muro (levantado pela fábrica). Em desespero após tão aparentemente desigual luta pegou num bulldozer e de uma assentada destruiu o edifício da autarquia, a casa do antigo autarca e outros edifícios públicos antes de se suicidar. Zvyagnitsev recordou já em entrevista que a este foco que lançou primeiras ideias juntou reflexões que fez depois de ler a Cidade de Deus de Santo Agostinho, questionando sobre as diferenças que existem entre um estado e um bando de ladrões e reparando que ambos são comunidades geridas por um líder, notando então que o que as distingue é a presença da lei. Acontece que, como reparou o realizador, se os estados perderem o sentido da lei, as fronteiras podem acabar esbatidas. E assim até mesmo o poderoso Leviatã idealizado por Hobbes rapidamente se transforma numa realidade onde a lei e ordem são verdades mais cinzentas e menos nítidas que o suposto.
Na pequena povoação litoral onde o mecânico Kolya vive com a sua segunda mulher e filho, numa casa que ele mesmo construiu à beira de uma ponte, a lei parece falar em favor de quem detém o poder. Um poder tentacular, alicerçado não apenas na lei, mas em relações demasiado próximas com quem a exerce, a aplica, o crime organizado e até mesmo junto dos que procuram zelar pelas almas do rebanho (num bem evidente apontar de dedo à Igreja Ortodoxa). O corrupto autarca da cidade quer os terrenos onde Kolya habita e em cena entra um advogado chegado de Moscovo para tentar jogar limpo onde a coisa parece acontecer no plano do sujo.
Leviatã tem esta disputa e todo o quadro político que a envolve como suculento tutano para uma história brilhantemente contada. Um quadro político que transcende a mera expressão local de um cacique que tem em mãos todas as figuras das hierarquias locais – renovando lealdades bem pagas a cada eleição vitoriosa – mas que olha para a Rússia atual como expressão de uma continuidade direta face a líderes dos tempos em que se falava de uma cortina de ferro que dividia a Europa.
Mas Leviatã é mais que um olhar crítico sobre a corrupção local ou a Rússia da era Putin. É, por um lado, uma reflexão sobre a identidade de um povo. Os seus comportamentos e vivências, da presença do álcool como aparente única forma de escape para uma população embrutecida ao estado em cacos de um programa de habitação social barata do século passado. E, por outro, uma constatação de um fado maior que assombra quem ali vive há séculos, entre o jugo dos czares, dos secretários gerais e dos políticos eleitos do presente passando uma lógica de continuidade. Uma fatalidade que se sugere implacável e imutável.
Depois do mais contemplativo e algo tarkovskiano O Regresso (de 2003) e do poderoso Elena (filme de 2011 onde se olhava para uma Rússia que aprendia a lidar com os ecos do regime comunista), pelo meio devendo juntar-se The Banishment, de 2007, que nunca estreou entre nós (mas sobre o qual em breve aqui falaremos), Leviatã confirma em Andrei Zvyagintsev não apenas uma nova força do cinema russo mas um dos grandes cineastas do nosso tempo. E é um filme assombroso!
Nota final para a música. Se em Elena o realizador havia encetado um relacionamento com Philip Glass, cuja música descobrira ao comprar um disco com a gravação com uma das suas sinfonias, em Leviatã dá uso a uma série de momentos orquestrais da ópera Akhnaten, que serve magníficas sequências de olhares sobre o contexto geográfico que acolhe a narrativa.
“Leviatã”
Realizador: Andrei Zvyagintsev
Com: Aleksei Serebryakov, Elena Lyadova e Vladimir Vdovichenkov
Distribuidora: Leopardo Filmes

Deixe um comentário