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Mais que a história de mais um divórcio

Texto: LOURENÇO ROCHA

Apresentando em antestreia durante a recente edição da Judaica – Mostra de Cinema e Cultura, o filme ‘Gett: O Processo de Viviane Amsalem’, de Ronit e Schlomi Elkabetz, chega amanhã às salas de cinema.

Gett é a denominação que o divórcio recebe na tradição judaica. É também o nome e o foco do culminar de três filmes que os irmãos Elkabetz (Ronit e Schlomi) escreveram e realizaram centrados na personagem Viviane Amsalem, protagonizada pela própria Ronit e inspirada na sua mãe. Se em To Take a Wife (2004) assistíramos ao drama emocional, intimamente encenado em seio familiar, de uma Viviane que não se sente amada pelo marido, dez anos depois Gett traz-nos uma Viviane mais resoluta na sua demanda existencial. Pelo meio, um 7 Days (2008), em que um Shivá (semana de luto após a morte de um familiar próximo) é pretexto para um escrutínio das dinâmicas sociais da família de Viviane – um olhar que, perdendo de vista a própria Viviane, se revela difuso. É durante este Shivá, que ocorre durante a Guerra do Golfo, que nos apercebemos de que Viviane já não mora em casa há três anos, o que coloca a acção do mais recente filme um pouco mais adiante no tempo. No entanto, Gett: O Processo de Viviane Amsalem tem um carácter autónomo, não sendo necessário ter visto os dois primeiros filmes para o perceber.

O Gett, em Israel, é jurisdição de um tribunal rabínico ortodoxo que, procurando a harmonia do lar judaico (seja ele observante ou secular), nem sempre tem a disposição para apressar a sua solução. Mais, de acordo com um arcaísmo social tomado aqui como preceito religioso, é o marido quem pode conceder o divórcio à mulher e ao tribunal cabe apenas mandatá-lo. Em entrevistas, os realizadores já revelaram que o silêncio sobre este tema, e o facto de o Gett ser um julgamento à porta fechada, os impulsionou a retratá-lo. Compreende-se pois a decisão do duo de constranger a acção do filme ao tribunal: anacrónica, a ortodoxia, a que o Estado dá voz, continua hoje a secundarizar a mulher.

É a este cenário sóbrio que a dupla traz Viviane tentando forçar o marido Elisha a conceder-lhe o divórcio. A certa altura, exasperada, Viviane grita: “Donne-moi ma liberté!” Impávido, Simon Abkarian, interpretando Elisha, permite-nos sondar o seu conflito interior, que tenta conciliar com uma intransigente honra e crença religiosas (Viviane é o seu destino, o seu castigo) a modernidade que a historicidade exige ao homem. É o trabalho destes dois actores, que encarnam de facto as personagens, o carácter contido e sintético das demais personagens que aparecem enquanto necessários, e finalmente a fotografia (entregue a Jeanne Lapoirie, cujo trabalho em Eastern Boys pôde ser visto no Queer Lisboa no ano passado), que toma o ponto de vista das personagens, que contribuem para encerrar numa teia muito concreta um drama tão humano, e por isso tão político. O tribunal transformado em muro é onde se grafita, a título de exemplo, a condescendência misógina do painel de rabinos, o sofisma do rabino Shimon, a apatia que o patriarcado, em Elisha, nutre pelo segundo sexo, e a opressão normalizada no casal-testemunha Aboukassis.

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