Cidadã ‘vs’ mundo
Texto: LIA PEREIRA
Foi quando, depois de nove anos a habitar os mesmos quarenta metros quadrados, avisei a senhoria que ia mudar de casa que comecei a sentir que o processo se assemelhava a uma separação amorosa.
“Tenho pena, mas você é que sabe o que é melhor para a sua vida”, disse de forma seca, e não sem algum ressentimento, a pessoa que, ao longo de quase uma década, vi uma ou duas vezes.
A procissão ainda ia, naturalmente, no adro. Mudar de casa é provação que se estende muito além da necessária seleção, arrumação e deslocação de pertences (e o que faziam aqueles malões cheios de roupa do século passado na despensa? Nem tudo é mau; para a casa nova seguiram apenas as traquitanas mais indispensáveis).
A festa anima-se consideravelmente quando, encaixotados que estão livros e discos, roupa e enxovais de cozinha, tentamos fechar contratos e abrir novos vínculos. Luz, gás, água, telecomunicações: são muitos, demasiados, os fios que nos ligam a empresas cuja política de comunicação se alicerça numa tríade de incompetência, perseguição ao cliente e mau português.
Escrevo esta crónica às seis da manhã, depois de o meu “fornecedor” de gás me acordar com um SMS a avisar que amanhã devo esperar “uma visita técnica”. Tudo estaria, passe o horário da mensagem, mais ou menos bem, caso a dita visita, bem como respetivas inspeção e instalação, não tivessem já acontecido ontem. Dir-me-ão, quando contactar a sua linha de atendimento, que se tratou de um lapso, tal como quando me avisaram que vinham a caminho – e não vinham – ou que já cá tinham estado e deixado um parecer negativo, quando tal deslocação nunca saiu do papel, ou do bits de uma mensagem de texto.
Ao todo, terei falado longas horas com dezenas de operadores, ora solícitos e aparentemente alheios ao caos das respetivas empresas, ora arrogantes e preocupantemente displicentes. A sensação que a certa altura do processo nos invade – a de que nunca veremos resolvido o simples pedido de um bem essencial – é avassaladora. Na linha da frente destas empresas das quais, excessiva e mas inevitavelmente, dependemos estão os operadores cuja missão parece ser causar o nosso desnorte e fazer-nos duvidar da nossa sanidade. Não porque sejam, estou em crer, terríveis sádicos, mas porque, tal como todos nós, têm de pôr pão na mesa e aquelas são, com certeza, as ordens (eles chamam-lhes “indicações”) que recebem “de cima”, de chefes que nunca veremos e que, como chefes que são, nunca estiveram quinze dias sem gás.
Para nos trocarem as voltas, os operadores recorrem a um vasto leque de truques divertidos, a saber:
– repetir até à exaustão, e sem qualquer necessidade, o nosso nome (ou, no meu caso, algumas variações do mesmo: fui Maria, Ilda, Amélia e até Pria, apesar de chegar a soletrar o exótico L I A). Felizmente sou apenas “sô dona”, imagino que os excelentíssimos senhores doutores e engenheiros passem (ainda) mais horas ao telefone.
– usar e abusar de muletas redundantes que deixam o cliente pensante sem reação. “Obrigada pelo tempo que aguardou”, repetem. Mas que alternativa teria? E respondo “de nada” ou escolho o silêncio, passando por malcriada? Tanto ruído na comunicação, tão pouca eficácia nas sucessivas chamadas que, recorde-se, somos nós a pagar.
– quando confrontados com o disparate do seu atendimento, muitos operadores optam por uma técnica desconcertante mas inteligente, a que chamarei “barriga para o ar”. Qualquer pessoa que já tenha tido um cão ou mesmo um gato sabe que, frequentemente, o animal que acaba de protagonizar uma asneira inenarrável responde à nossa cólera deitando-se no chão de barriga para o ar, de semblante completamente submisso. Quem terá assim coração para desferir a chinela de castigo? Assim fazem muitos operadores quando, irado mas com razão, o cliente faz perguntas complicadas. “Tem toda a razão, sô dona”, “Compreendo perfeitamente”, murmuram, como que se penitenciando. E assim se encrenca, cada vez mais, o nosso insolúvel processo.
– reservo ainda algumas palavras para o português de parte desta classe profissional. Nunca ouvi tantos “fáááçamos” e “póóóssamos” como nas últimas semanas – e até um singelo “recebido” passa com pompa a “rececionado”, sinal da habitual tendência para complicar o que devia ser simples, emperrando ainda mais a comunicação.
Se nestes contactos para conseguir um novo serviço o surrealismo impera, quando a intenção é romper um vínculo já existente a analogia da relação amorosa revela-se em todo o seu esplendor. “Há outra pessoa?” (“Já tem outra operadora?”); “É o teu colega do escritório?” (“Para que operadora vai mudar?”); “O que é que ele tem que eu não?” (“Que condições lhe estão a oferecer?”). E por muito que vinquemos a nossa intenção de deixar aquela relação, sucedem-se os contactos – muitas vezes raiando a perseguição – e as promessas de um empenho nunca visto: eu levo o lixo lá fora, eu ouço-te com mais atenção ou, em linguagem empresarial, oferecemos-lhe preços imbatíveis e mais canais de filmes.
Agora que, espero eu, a mudança e penosas mudançazinhas associadas estão quase concluídas, temo que o próximo passo destas empresas venha a ser importunar-nos no Facebook. Não quero dar ideias a ninguém, mas ao menos aí podíamos sempre desamigar quem tão mal nos trata.

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