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O “marxismo” de que o mundo precisa

Texto: RUI ALVES DE SOUSA

A reedição da maioria dos filmes dos irmãos Marx em DVD é um pretexto para (re)descobrir o legado deixado por Groucho, Chico, Harpo e Zeppo. Assinaram alguns clássicos intemporais, e são uma das mais influentes trupes de comédia da história do cinema.

"Duck Soup"

Um não fala, mas expressa-se por uma série de gestos atrevidos – e toca harpa com muita sensibilidade e engenho. O outro tem sempre uma resposta na ponta da língua, enquanto “destrói” todas as pessoas sérias que lhe aparecem à frente. E o terceiro está pronto para confundir todos os que o rodeiam, por razões inexplicáveis, participando também, ao piano, em alguns números musicais. Assim podemos sintetizar, de uma forma muito elementar, as principais diferenças entre Harpo, Groucho e Chico Marx. A sua anarquia, a sua “ideologia” humorística – ou o seu… “marxismo” muito particular – atravessaram várias gerações e continuam a influenciar comediantes e comédias. Agora podemos reencontrar estes irmãos graças à reedição em DVD de uma grande parte dos seus filmes.

Mas uma das coisas que merecem ser descobertas, graças a este risorgimento dos Marx no home video português, é a importância do quarto irmão no humor corrosivo dos outros três. De facto, nos filmes em que entra, Zeppo Marx parece ser apenas o herói romântico, sem piada e nenhum interesse, que contracena com os outros sem introduzir nenhuma punchline, nenhum momento de slapstick ou algum trocadilho linguístico disparatado. Mas vale a pena olhar com atenção para algumas cenas de cada filme, em que Zeppo acaba por ajudar muito a continuidade dos segmentos mais famosos dos outros irmãos – e, em certos momentos, até chega a interpretar os papéis de Groucho, de Harpo e de Chico (veja-se com detalhe Animal Crackers e o primeiro apagão do filme: quando pensamos ouvir Groucho no escuro, é apenas Zeppo a imitá-lo, quase na perfeição!). O irmão mais desvalorizado teve, afinal, uma importância que nunca conseguimos conhecer.

Deve dar-se o devido mérito ao irmão Marx menos famoso, mas também relembrar as razões que fizeram a popularidade dos outros três. São duas caixas de DVD que voltam a estar disponíveis no mercado nacional, e cada uma representa um período distinto do humor e do cinema feito pelos irmãos Marx. A primeira, com cinco filmes produzidos pela Paramount, caracteriza-se por uma maior anarquia e irreverência dos gags, sendo, por isso, a fase mais influente e marcante da trupe. A qualidade das cópias apresentadas, desprovidas de restauro (algo gravíssimo, dada a relevância histórica dos filmes do pack), não impede no entanto que se consiga apreciar a maioria das manobras e dos esquemas levados a cabo pelas personagens interpretadas por Groucho, Harpo, Chico e Zeppo, que se vão tornando mais elaboradas de filme para filme, e que atingem o seu apogeu com Duck Soup (este último, um flop na época do seu lançamento, é hoje o filme mais famoso e imitado dos Marx).

No entanto, é de lamentar que estes filmes tenham sofrido uma literal reedição, sem terem sido corrigidos os erros iniciais: os discos são exatamente os mesmos que por cá saíram há vários anos, com pouquíssimos extras, e é pena encontrar o primeiro grande sucesso dos Marx, The Cocoanuts, numa cópia muito danificada (um filme mais interessante a nível histórico, por demonstrar muitas das dificuldades da transição do mudo para o sonoro – é de 1929). Já o hilariante Horse Feathers está retalhado em algumas cenas que perturbam o timing preciso das piadas (um problema comum a diversas cópias do filme que “sobreviveram” ao tempo). Apenas a caixa dos DVD foi alterada, e continuamos a não poder ver resolvidas estas graves falhas. Mas as cópias usadas das outras três comédias que compõem este pack (Animal Crackers, Monkey Business e Duck Soup) estão em melhor estado, com as qualidades necessárias para poderem ser contempladas da melhor maneira.

Já a outra caixa reeditada, que inclui mais seis filmes dos Marx, representa os tempos que o grupo passou na MGM. Aqui podem ser vistas, ou revistas, todas elas em belíssimas cópias (e com uma quantidade considerável de interessantes opções especiais, que incluem entrevistas, comentários e pequenos filmes da época), comédias célebres do período mais rentável dos Marx. Trata-se, neste caso, de uma ótima reedição, que vale o investimento, e à qual mais nada precisou de ser acrescentado ou melhorado.

Contratados pelo visionário Irving Thalberg, que adaptou a anarquia do humor dos filmes da Paramount a uma estrutura narrativa mais linear, os irmãos triunfam nestes estúdios já sem Zeppo, que decide abandonar o trabalho por não querer continuar a ser relegado para as personagens “sérias” e “sensaboronas” da fase anterior. Apesar de as histórias não serem o mais fundamental para a comédia marxiana (mas tudo aquilo que os irmãos conseguiam tirar dessas histórias), aqui encontramos uma maior atenção a essa parte. Por isso, os Marx tornam-se os personagens secundários das histórias de amor ou de crime que têm de ser resolvidas em cada um dos filmes. Mas não são as narrativas que sobressaem mesmo assim, face às hilariantes peripécias montadas pelos Marx: desde a enorme confusão burocrática criada por Groucho e Chico em Uma Noite na Ópera até às desventuras de Uma Noite em Casablanca (a comédia mais desvalorizada do grupo), este conjunto de filmes promete um maravilhoso reencontro com a imaginação do humor da trupe que assinou vários grandes clássicos do cinema americano.

Mas engane-se aquele que confunde a palavra “clássico” com ultrapassado. Muitas das one liners de Groucho, da pantomima de Harpo e dos erros do péssimo sotaque italiano de Chico continuam a ser coerentes com as tendências de comédia da atualidade. E é isso que torna uma delícia esta ressurreição “marxista”: é que ainda nos rimos muito hoje de toda a loucura arquitetada pelos irmãos em cada um dos filmes. É claro que algumas experiências são mais bem conseguidas do que outras (Go West e The Big Store são apenas comédias agradáveis, que não conseguem atingir o apogeu de outros títulos), mas todas conseguem provocar-nos sorrisos, boa disposição e, em casos mais extremos, gargalhadas que envolvem lágrimas acidentais, quedas aparatosas do sofá e outros tantos efeitos secundários. Uma série de preciosidades para ver, rever e rever, sem moderação, sem responsabilidade, e sem qualquer noção. Se houve algo que os Marx nos ensinaram foi que temos de ser irresponsáveis e enérgicos perante o quotidiano polido e politicamente correto em que vivemos. E não poderia ser melhor a altura para lembrar que este marxismo nunca foi tão necessário como hoje para a humanidade.

Os packs “Marx Brothers – Coleção” (Universal) e “A Loucura dos Irmãos Marx” (Warner) foram relançados pela NOS Audiovisuais.

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