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Texto: JOÃO FERNANDES

2000 anos depois de Aristóteles construir as primeiras fundações da lógica, as ambições da busca da verdade levaram grandes pensadores a sacudi-las violentamente e a levar o pensamento humano ao seu limite: esta é a história de ‘Logicomix’.

Quem olha pela primeira vez para a fotografia de família da conferência de Solvay de 1927 pode ser tomado por um sentimento de assombro e reverência ao ver na mesma fotografia todos os gigantes da física e da química do século XX: Einstein e Planck, Schrödinger e Heisenberg, Dirac,Pauli, Compton, Mme. Curie e Niels Bohr, todos nomes que chegariam mais cedo ou mais tarde à lista dos prémios Nobel em Física ou em Química e que, num certo ponto no espaço e no tempo, estiveram todos juntos num momento histórico. É impossível não perguntar quanto da história científica moderna não terá ficado desenhada a traços largos nesse encontro titânico dos mais brilhantes pensadores da época, num momento em que se debatiam com avassaladoras consequências da descoberta dos quanta e da velocidade finita da luz.

Ao folhear as páginas de Logicomix brevemente pela primeira vez, o leitor poderá ser tomado por igual sensação de respeito e admiração, de que tem nas mãos um relato dos momentos históricos em que os grandes nomes da matemática, lógica e teoria da computação se encontraram em confronto ou em cooperação para atingir e alargar o limiar do conhecimento humano. A lista de nomes presentes chega para impressionar: Hilbert,Poincaré, Cantor,Frege, Dedekind,Klein, Hermite, Mittag-Lefler, von Neumann,Turing, Wittgenstein, Russell, Gödel e até mesmo Gauss faz uma aparição fantasmagórica; nomes que aparecem na narrativa e também no informativo apêndice que generosamente enquadra cada nome no seu momento na História.

A que propósito se invocam tantos nomes? Qual é o assunto de um livro sobre matemática que tem tão poucas contas e muitos bonecos? O subtítulo responde: “Uma busca épica da Verdade”, o que remete para um silêncio solene e reverencial, precisamente o contrário do que encontramos no princípio da história: Bertrand Russell, conhecido filósofo, matemático, lógico e pacifista, está nos Estados Unidos nas vésperas da entrada do país na II Guerra Mundial, quando era ainda nada consensual a sua participação numa guerra ainda só europeia, para dar uma palestra sobre a Lógica nas relações humanas. O que ele acaba por relatar são as suas memórias,e a sua notável contribuição para a “busca épica da Verdade”.

Mas o que pode ensinar a vida de um homem que precisou de 362 páginas para provar que “1+1=2”? Aparentemente muito, e não só sobre lógica. Que o seu maior esforço, os três volumes dos Principia Mathematica que escreveu com Alfred Whitehead para dar um fundação sólida a toda a matemática através da lógica e da teoria dos conjuntos, tenha resultado num fracasso é suficiente para concluir que não se trata de uma biografia hagiográfica. Antes é um relato desarmantemente humano da tentativa de um homem encontrar a maneira correcta de pensar, de modo a alcançar a verdade e talvez fazer as escolhas certas na vida, mas inevitavelmente falha, ao negligenciar aqueles que mais o amam, aqueles a quem devia ter amado mais, perde uma fracção da sua humanidade para a lógica que mais tarde reencontra e recupera no seu “pacifismo militante”. Aprendemos também que Russell não foi o único a perder a qualidade da empatia humana: Frege sucumbe à paranóia e ao ódio anti-semita, Hilbert renega o seu próprio filho esquizofrénico. No fim, o génio de Kurt Gödel põe um fim a todas as suas ambições de conquista da verdade absoluta, da forma mais inegável possível: por uma prova matemática do seu célebre teorema, que demonstra que se fossemos capazes de criar um sistema de axiomas suficientemente poderoso para abarcar toda a vastidão da matemática, mais cedo ou mais tarde seríamos levados a afirmar proposições que não seríamos capazes de provar, ficando com uma teoria incompleta nas mãos. Mas da morte tudo se regenera, e da incompletude de Gödel nasceu a teoria da computação, pela mão de von Neumann e Turing e assim também o mundo moderno dos computadores e das tecnologias da informação em que vivemos.

Talvez seja agora uma desfaçatez que eu esteja a fazer ao leitor, mas os momentos de encontro de titãs que tanto o espantaram ao princípio provavelmente não aconteceram, ou pelo menos não como estão contados em Logicomix. A História ela mesma foi manobrada para encaixar na narrativa tão cativante como engenhosa na sua concepção, que se auto-referencia ao contar como os seus criadores a criaram, e assim encapsula uma das mais férteis e enigmáticas ideias humanas, que está na base dos muitos paradoxos lógicos cuja resolução motivaram os esforços de Bertrand Russell e todos os grandes matemáticos e lógicos com quem num certo ponto do tempo e do espaço se cruza. Para levantar apenas um pouco o véu sobre este assunto, e para terminar ao mesmo tempo, deixem-me só dizer que esta frase é falsa.

PS. A ilustração na capa pode ser interpretada como uma referência ao método de indução matemática, que sucintamente consiste em provar que se um membro de um conjunto verifica uma propriedade, o elemento que se lhe sucede também verifica essa mesma propriedade, e assim é desde o primeiro elemento do conjunto até ao mais longínquo elementos que se conseguir imaginar, algures no infinito. Assim, quando a primeira peça de dominó cai, todas as outras caem de seguida, uma atrás da outra, até ao infinito. Posto de outra maneira, se o primeiro homem de todos fosse português, o seu filho e herdeiro também teria sido português, e também português teria sido o seu neto, e todos os que nasceram depois dele até aos dias de hoje, em que somos todos portugueses ou algo de muito errado se passa!

“Logicomix”, com textos de Apostolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou, e desenhos de Alecos Papadatos e cores de Annie di Donna, está publicado entre nós pela Gradiva, numa tradução de Nicolás F. Lori, com revisão científica e prefácio de Jorge Buescu.

 

Principia_Mathematica_54-43

Legenda: Assim, ao fim de 362 páginas é possível afirmar com toda a certeza e rigor que 1+1=2. Os autores, Russell e Whitehead, comentam também que esta proposição pode ser ocasionalmente útil.

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