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A Ode Marítima de Medeiros/Lucas

Texto: TIAGO RIBEIRO

É em ‘Mar Aberto’ que se oficializa a parceria de já alguns anos entre Pedro Lucas e Carlos Medeiros, dois açorianos de coordenadas atiradas à música do mundo.

Nove ilhas, uma mão e um dedo de cidades. E um incontável lustre poético que brota do casamento entre o isolamento e a coragem destes homens que fazem do mar e da terra a exploração possível da força do corpo e da invenção a que a necessidade sempre obrigou. Aí está o berço primeiro das canções que este disco profetiza com o valor dos seus criadores, mas também com a coincidência simbólica do tempo de algumas definições estratégicas deste arquipélago açoriano.

Não será possível imaginar este trabalho com outra identidade que não a insular. Também seria quase impossível – até acontecer – termos em Medeiros/Lucas um provérbio existencialista que junta dois apelidos de dois dos melhores exemplos da criação aventureira, a que rompe fronteiras geracionais e históricas. E até com a toada certeira de respeitar as recolhas matriarcais de tudo isto pelas mãos de dois visionários do seu tempo, Giacometti e Artur Santos, este último realizador de uma riquíssima antologia sonora açoriana da primeira metade do século passado.

Mas se, por algum motivo, tudo isto parece completamente novo, recorde-se que Pedro Lucas, a metade mais nova deste Medeiros/Lucas, arrancou em busca desse atrevimento da reinvenção e do desassossego, transcritos em megabytes, há mais de cinco anos, com, então, dois discos completamente novos na exploração de ambientes sonoros contemporâneos e urbanos.

Vale a pena lembrar antes de mais as duas anteriores homilias discográficas, 2: Sagrado e Profano e o próprio disco de estreia homónimo d’O Experimentar Na’ M’Incomoda inspirado na matriz completamente inovadora à época d’ O Cantar Na’ M’Incomoda, disco de 1998 a solo de Carlos Medeiros e com produção de Luís Gil Bettencourt (esse sim primeiro livre atestado da reinvenção da arte e saber acumulados nos cantares de várias ilhas do arquipélago, sem que a autoria ou origem se consigam precisar sequer).

Agora, Pedro Lucas reparte a aventura entre si e a sua já velha conhecida e domada bateria de aparelhos de composição digital com Carlos Medeiros, o velho barqueiro das canções que, nunca querendo ser tradicionalistas, recuaram à reminiscência da oralidade e dessa herança primária das canções baseadas no verbo – não sendo algo verdadeiramente novo para o próprio.

Mar Aberto sai dos sombrios terrenos da eletrónica para dar lugar a outros instrumentos, eles mesmos presentes de corpo e alma, orgânicos respeitadores da palavra a pintar sempre em sobreposição toda a textura musical em cada uma das onze canções do disco.

Numa firme circum-navegação por territórios de escritos de Miguel de Cervantes a Armando Cortes-Rodrigues (cronista, dramaturgo e etnólogo micaelense do século XX), percebe-se pela escolha que aqui se baralham as voltas aos dissertadores livres que não têm contas precisas quer de escolhas, quer de alguma razão de ser plausível para contrastar mais de quatro séculos literários e de latitudes até.

Mar Aberto segue a cartilha de navegação de Carlos Medeiros, mas também de outros mais instrumentos essenciais a essa missão de remar ao encontro de maré alguma, como são os casos de Mitó Mendes (A Naifa), Ian Carlo Mendoza (Tigrala), Augusto Macedo (Selma Uamasse), Pedro Gaspar (Bandarra) e Gil Alves, músicos de tão distintas paragens na vocação de navegadores, aqui em bom jeito de contramestres nesse apelo à navegação.

O disco está disponível para escuta desde o início do mês nas plataformas digitais, mas conta também com uma ambiciosa edição em vinil, que aqui faz um piscar de olhos à imortalidade que o suporte transpira, quer também, por outro lado, da dignidade que as canções, elas mesmas, carregam à força das correntes do tempo em marulho.

O lançamento do disco está agendado para esta quinta-feira no MusicBox, em Lisboa, e conta, para já, com um videoclipe para Canção de Mar Aberto, realizado por Gonçalo Tocha.

Ei-lo triunfal, Mar Aberto.

“Mar Aberto”
Medeiros / Lucas
Ed. digital e LP, Lovers & Lollipops

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