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Os “lãzudos” vão à guerra

Texto: JOÃO SANTANA DA SILVA

Entre nós, em 2014, assinalou-se o centenário do início da Grande Guerra de 1914-1918, e a publicação de antigos e novos estudos multiplicou-se com a efeméride. Talvez por isso, tenha passado despercebida uma das publicações mais importantes do ano: a reedição de ‘A Malta das Trincheiras’ (1.ª ed. 1918), de André Brun, pela Guerra & Paz.

Diz André Brun (1881-1926) que o típico “oficial lusitano” está nas suas “sete quintas” na guerra de trincheiras, pautada por “guarnições fixas”, “sítios certos”, longos interregnos e breves trocas de tiros de artilharia durante as quais se combate sem sair dos buracos, se perdem homens sem ganhar um centímetro que seja e se pode ganhar a guerra, simplesmente, porque o lado contrário ficou sem soldados para a frente – que é, como quem diz, sem lenha para manter acesa a lareira. A verdadeira guerra é a da paciência e da rotina.

O espécime de oficial português sente-se, pois, em casa na Flandres. “Montou muitas repartições, arranjou muitos empregos, criou muitos chefes – distinguem-se pela pala – rodeou-os de muitos adjuntos, deu-lhes muitos amanuenses e pôs-se a escrever, umas vezes à máquina, outras a lápis, o canto suplementar dos Lusíadas, que viemos compor a França, nos seguintes termos: «Em referência à nota N.º X deste C., lembro a V. Ex.ª o disposto na alínea a) da O. S. n.º 14 381 da R. E. do Q. G. do C. E. P., que altera o artigo Y da circular N.º Z.-0. contendo as instruções a que se refere a determinação dos S. A. da 7. a B. I.»”. Se esta passagem, que praticamente abre o livro A Malta das Trincheiras (de 1918), não enterra definitivamente o mito da epopeia lusitana, não sei o que o fará.

André Brun, ao contrário de outros escritores que farão panegíricas ao conflito europeu ou o descreverão como um cenário mais terrível do que um quadro de Bosch, rebaixa a experiência ao nível da vivência dos soldados e oficiais. A Flandres, para ele, não era muito diferente das mercearias do Bairro Alto e dos cafés do Chiado. Os rapazes engatam raparigas, contam piadas para afastar a desgraça e tentam, ao máximo, escapar-se ao trabalho.

Ele próprio não almejava a erudição e ininteligibilidade de alguns seus contemporâneos. O lado criativo de Brun materializava-se nas suas obras satíricas, desde o teatro à crónica jornalística. Tal como grande parte dos dramaturgos seus contemporâneos – de Eduardo Schwalbach a Alfredo Keil –, Brun aplicou os seus dotes ao teatro de revista, então com grande fulgor e posição privilegiada para combinar a comédia de costumes com a crítica social e política. Nesse contexto artístico, escreveria as peças A Vizinha do Lado e A Maluquinha de Arroios.

Mas foi nos jornais que ganhou a admiração de colegas e leitores mais exigentes, sobretudo no Miau!, semanário humorístico de culto, na Sátira e na Contemporânea, entre outros periódicos. Foi logo no número inaugural da Sátira (1911) que Brun escreveu a rubrica “Elogio da preguiça”, que caracterizava o homem e futuro autor de A Malta das Trincheiras: “Quando Deus fez esse boneco de barro chamado Adão e lhe deu o usufruto do Paraíso, criou-o para o perpétuo descanso, para o absoluto sossego. No Éden terreal não havia repartições, jornais que pedem original, mãe e filhos que sustentar – quem os tem, é claro”. Esse sentido de humor ser-lhe-ia muito útil nas trincheiras da Flandres.

Como se sabe, a guerra tinha rebentado no Verão de 1914, quando o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro ao trono austro-húngaro, foi assassinado em Sarajevo, em pleno caldeirão de movimentos nacionalistas há muito em ebulição. As grandes potências europeias são arrastadas para a guerra nesse ano, mas Portugal fica na retaguarda. Para grande pena do Partido Republicano Português, cujos principais dirigentes viam a participação como uma oportunidade única de mostrar a maturidade da República fundada nem há 5 anos. É por isso que, quando a nossa pátria finalmente se junta a França, Reino Unido e Rússia em 1916, se abrem mil possibilidades. As harpas tocam. O livro d’Os Lusíadas reabre-se para um novo capítulo heroico na história portuguesa. Os “guerristas” – apoiantes da participação portuguesa na guerra – despertam alegres desse seu sonho bélico, então tornado realidade. Outros mesmo, como os intelectuais da Renascença, continuam a sonhar acordados. É esse lado que é visto em muitas das memórias e narrativas da experiência lusitana em França.

Jaime Cortesão, co-fundador do movimento da Renascença Portuguesa, historiador e político republicano com formação em medicina, dá à estampa Memórias da Grande Guerra (1916-1919) em 1919, ano seguinte à publicação do livro de Brun. Cortesão foi, aliás, um dos grandes apoiantes da entrada de Portugal na guerra, tenho participado ativamente na campanha de opinião dos “guerristas”, antes de participar voluntariamente na própria guerra, como médico. Augusto Casimiro, destacado poeta e igualmente membro do movimento da Renascença, já tinha publicado as suas memórias desta experiência na forma poética em 1916 (A Hora de Nun’Álvares) e continuará, no último ano e no rescaldo da guerra, a escrever sobre ela.

No entanto, qualquer uma dessas memórias de Cortesão, Casimiro e outros escritores que se juntaram militantemente aos batalhões a caminho de França e África, estão carregadas de um voluntarismo épico que era típico da campanha a favor da participação na guerra. Quase como se se falasse de um destino nacional. Em Nas Trincheiras da Flandres, de 1918, Augusto Casimiro vinga e reafirma a “afirmação arrojada e bela das primeiras horas da guerra: – a neutralidade, a inércia será a traição e a morte”. Conta ainda o encontro com um conimbricense que estudava na Bélgica quando rebentaram as hostilidades, que o terá brindado com relatos do “entusiasmo dos belgas quando os regimentos partiam para a fronteira”. Uma festa patriótica.

O estado de espírito de André Brun é outro. E deixa cedo, no livro, a crítica aos memorialistas épicos, embora sem anotar nomes, convencendo-se de que “melhor seria deixar a factura de livros precipitados àqueles correspondentes de guerra que, idos de aqui com a missão de nos espetar na imortalidade como se espetam borboletas numa rolha, acham inspiração suficiente para trezentas páginas no palpitar das grandes cidades e num passeio de três dias a trinta quilómetros das linhas avançadas”.

Mais importante do que contar como se esquiva das balas ou de como testemunhou atos de inigualável valentia, é para Brun essencial contar como, no meio das trincheiras, os portugueses conquistaram o epíteto agridoce, ou talvez afetuoso, de “lãzudos”. No início do Inverno de 1917, quase um ano depois de desembarcarem na Flandres, os soldados lusitanos receberam pelicos e ceifões alentejanos para aguentar o frio dos campos de batalha. Acontece que alguns deles resolveram virar os casacos do avesso, ficando com o pelo de carneiro do lado de fora. Ao avistarem-nos a andar de cócoras na trincheira adversária, os alemães passaram a gritar, entre gargalhadas, sonoros “mé!”, que se tornaram uma piada corrente.

O escritor ilustra-nos o extenso elenco dos protagonistas da guerra de trincheiras. Para além dos “lãzudos”, essenciais para a trama, temos os “alicates”, os soldados que rastejam de um lado para o outro a consertar arame farpado, comunicações e qualquer fio que tenha de ser recuperado. Há um lendário segundo-comandante de brigada que, ao receber pombos-correio na frente de batalha, “os mandou cozinhar com arroz, agradecendo em carta ao general britânico e perguntando-lhe onde os comprava, pois tinham sido muito apreciados na mess”. Temos, entre muitos outros, os “palmípedes”, representantes do Estado-Maior e assim conhecidos pelas palmas que têm na gola da farda, e ainda o ”cachapim”, o soldado que “não sabendo da guerra de Tróia nem sequer de organizar as camisolas na própria mala, conseguiu um lugar à retaguarda”.

Os episódios e anedotas – verdadeira forma de estruturar os capítulos do livro – são intermináveis. Mas Brun evita ficar preso ao registo humorístico, afastando assim o risco de resumir a experiência portuguesa no teatro de guerra a uma quase “não participação”. Segundo o escritor, os portugueses também conheceram o medo, quase lado a lado com os soldados inimigos, separados apenas pela “terra de ninguém”, o espaço não reclamado que ficava entre as trincheiras adversárias.

O pior era a noite, na qual os sons eram terrivelmente multiplicados e amplificados. Posto o sol, vêm as trevas, “e então a terra de ninguém é cheia de mistérios, povoada de perigos que não se vêem”. Aproveitando essa escuridão, saem alguns grupos de soldados para trabalhar nas vedações, reforçando e consertando o arame farpado aqui e ali. No entanto, é sob esse terrível manto negro que se apanham os maiores sustos. “Uma sombra, que se move de repente a alguns metros, faz suspender as respirações, amarfanha os nervos”. O vulto imobiliza-se, os segundos arrastam-se e o tempo quase para, na iminência do combate, até se identificar o potencial inimigo. “Terá ouvido alguma cousa também? Decorrem segundos que parecem séculos. De súbito um very-light sobe no ar e ilumina todo o campo durante alguns instantes. A sombra era uma moita de verdura que o vento fazia mover e, quando o fogacho iluminante se apaga, respira-se fundo e continua-se a rastejar”.

Os dias passam e os soldados não os contam. A falta de sono, os turnos variáveis e o frequente clarão dos morteiros e very-lights desempenham um papel fulcral nessa perda de noção do tempo. Mas são as primeiras baixas do batalhão português as que mais abalam a moral dos camaradas. Três mortos. “São os primeiros que a guerra nos leva, e o coração aperta-se-nos”, diz Brun. E então, na primeira linha, enquanto se escava no entulho, “são as lúgubres descobertas: uma bota que ainda tem o pé dentro, uma mochila feita farrapos, uma espingarda com o cano torcido, pedaços de corpos enegrecidos e amalgamados com lama. Ao cabo de uma hora há, sobre três mantas estendidas, três vultos confusos. Não temos bem a certeza que esta perna seja do dono daquele tronco a que já falta um braço… A terra, que os amortalhará a todos, tudo igualará no mesmo pó de que foram feitos e a que tornam”.

Mas nem tudo está perdido. Ao fim do túnel, sempre o humor. Mesmo que humor negro. Para bem de nós, André Brun deixa um conselho, porventura, útil: “é péssimo para a saúde o rebentar inesperado de uma granada de mão teutónica”. A própria burocracia ajuda à comédia desbragada em plena barbárie: “a nota, a relação, o relatório; é todo o bicho-careta de pena atrás da orelha a exigir-nos que justifiquemos a sua existência”.

Há, até, espaço para pequenos momentos bucólicos, que lembram que nem tudo é morte. Como, por exemplo, as gaivotas “negras, com o peito muito alvo”, que entram a voar pelas casas dentro, onde quer que os soldados estejam alojados. Estas andorinhas, diz o escritor, “entrando e saindo por uma janela que alumia frouxamente criaturas que aqui estão para derramar o seu sangue ou o dos outros, para dar ou receber a morte, são, como os lilases da mesa, um tão curioso contraste, não é verdade?”

A reedição de A Malta das Trincheiras, livro que praticamente não teve reedições e cuja última terá sido em 1983, pela Civilização, veio timidamente complementar o acesso dos leitores portugueses aos clássicos e às obras de culto, sempre tão presas à reciclagem de Eça de Queirós e Fernando Pessoa. André Brun foi, inclusivamente, um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em 1925, pelo que a reedição é duplamente celebrada com a efeméride da Grande Guerra e com os 90 anos dessa cooperativa. No prefácio desta edição da Guerra & Paz, o atual presidente da SPA, José Jorge Letria, diz o mais importante: “A melhor homenagem para um escritor é sempre reeditar e ler a sua obra. Eis o que aqui se faz, para valer como exemplo para muitos outros que o tempo pode deixar para sempre atolados na trincheira lamacenta do esquecimento colectivo”.

Por fim, o riso. O riso ajuda a salvar vidas. Ou, pelo menos, a própria vida do escarnecedor. Toda a gente ri, até mesmo perante a visão da morte, desde que seja do inimigo ou de um batalhão aliado desconhecido. Riem, “deste riso nervoso que temos sempre quando uma bala nos assobia a três palmos do nariz”. E afinal, quando pensamos na destruição que André Brun testemunhou, nos camaradas caídos, na indescritível sensação de que não se vai voltar vivo a casa, só apetece trocar as voltas ao coração e fazer valer os episódios de trincheira e da retaguarda dos “lãzudos”. Até a do soldado alemão capturado que apresenta ao escritor as fotos dos filhos (“três garotos loiros que não têm culpa de o pai ser boche”) e explica que o irmão também está preso em Inglaterra. “É uma vocação de família”, diz Brun. Pagar à morte em riso, sempre.

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