Quando o amor também vai à guerra
Texto: PATRÍCIA VIEGAS
Antónia, de Celorico da Beira, casou com o primeiro namorado, Carlos, destacado para a guerra em Angola e sozinha, sem empregada ou rede familiar por perto, criou dois filhos. As ligações telefónicas eram más. Restavam-lhe os aerogramas. O fininho papel destas cartas de correio aéreo, um serviço gratuito durante a Guerra Colonial, era o único meio de comunicação de muitas famílias portuguesas que viram namorados, maridos e filhos partirem para o Ultramar. Em 13 anos de conflitos em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau trocaram-se 300 milhões de aerogramas. Madalena, da Amadora, não se limitou a ficar à espera deles e pôs-se a caminho de Luanda, onde foi casar com um piloto da Força Aérea, Nuno, acompanhando-o em quatro comissões em África. Natércia, que casou com Fernando José, que a História imortalizou como Salgueiro Maia, viu aquele que mais tarde seria um dos Capitães de Abril embarcar para a Guiné em 1971. Ainda lá chegou a ir de férias, mas durante muito tempo deu por si sozinha em Santarém, à espera dos ditos aerogramas e a choramingar um bocadinho na marquise da cozinha. Amélia recebeu em festa António, que passara 27 meses em Sá da Bandeira e Luso, em Angola, mas logo viu a sua vida transformar-se num inferno. O marido sofria de stress pós-traumático. Partia tudo em casa, dava saltos de noite e gritava que estavam a entrar, abria os roupeiros para ver se estava lá alguém, via turras em todo o lado e, mais tarde, já doente com cancro, prometia que a matava. Estas são algumas das histórias que encontramos em As Mulheres e a Guerra Colonial, um livro em que a jornalista Sofia Branco pretende mostrar o ponto de vista das portuguesas sobre a guerra.
“Entrevistei 49 mulheres para o livro, com histórias e percursos muito diferentes entre si, das cidades e das aldeias, da alta burguesia e do povo, esclarecidas e analfabetas, envolvidas no apoio ao regime e na resistência clandestina. Foi mais fácil do que julgava chegar até elas e raramente foi necessário convencê-las da importância de partilharem o seu testemunho. Quase todas estavam ansiosas por contarem a sua visão de um acontecimento que alterou, também, as suas vidas. Claro que, tendo algumas delas vivências mais traumáticas, de viuvez e vidas infernais, nem todas as histórias demoraram o mesmo tempo a estarem concluídas e implicaram alguma negociação”, explica a autora, ao ‘Máquina de Escrever’, sublinhando que “nenhum nome deste livro é falso, cumprindo o compromisso de dar voz a mulheres reais”.
A necessidade de mostrar a visão das mulheres veio do facto de, durante muito tempo, a História ter privilegiado a narração dos homens sobre os grandes acontecimentos. “As marcas que a Guerra Colonial deixou nos combatentes estenderam-se às famílias, às mulheres e aos filhos, vítimas secundárias de stress pós-traumático, ainda hoje não reconhecidas, nem acompanhadas devidamente, pelo Estado. Achei que as mulheres podiam acrescentar algo àquilo que já conhecemos sobre este episódio da nossa História recente, ao mesmo tempo que as transformei em personagens centrais que nos conduzem por um retrato do Portugal da altura”, diz a jornalista, que no livro sublinha o facto de as mulheres terem assumido a gestão do lar, o sustento da família, se terem transformado no amparo dos mais necessitados e na força e ânimo dos que estavam longe. Sem combaterem, sem pegarem numa única arma, as mulheres portuguesas viveram cada dia da Guerra Colonial como se estivessem no teatro de operações.
No decorrer de 13 capítulos, os testemunhos destas mulheres mostram como, de 1961 a 1974, todo o país foi à guerra e que, depois disso, nada ficou como era, também para elas. “Por muito diferentes que sejam, estas mulheres tiveram em comum o sofrimento e a coragem. Tomaram conta de um país esvaziado de homens, para a guerra e para o estrangeiro, fugindo da tropa ou escapando à miséria. Assumiram as rédeas do seu destino. Por mais estranho que possa parecer, a Guerra Colonial acabou por ter um efeito emancipatório na vida de muitas mulheres, que deixaram o lar para entrar no mercado de trabalho e assegurar o sustento da família”, conta a autora, para quem esta outra face da guerra é uma espécie de dano colateral, penetrante, permanente. E reconhece: “Depois deste livro, sinto que conheço melhor as mulheres do meu país, a quem presto homenagem e com quem aprendi muito. Sou, hoje, uma mulher muito mais rica”.
“As Mulheres e a Guerra Colonial”
O Conflito Colonial Visto e Sentido pelas Mulheres
de Sofia Branco
A Esfera dos Livros, 376 páginas

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