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Os bosques da ira

Texto: NUNO GALOPIM

Partindo de um texto de Heinrich von Kleist, o filme ‘A Vingança de Michael Kohlhaas’ sugere uma abordagem diferente ao universo do cinema de época.

Imortalizada na escrita de Heinrich von Kleist, a figura de Michael Kohlhaas transporta-nos para uma história de justiça feita pelas próprias mãos (leia-se, uma vingança) na Saxónia do século XVI. Houve de facto um Hans Kohlhase, figura real embora algo mitificada pelo tempo, sendo naturalmente turvas algumas das linhas na sua caracterização. Era mercador – conta-se que um negociante de cavalos – residente na região da atual Berlim e, não conseguindo conquistar pelas vias legais as compensações por um ataque que lhe custou perdas de dinheiro numa feira em Leipzig onde ia participar, reuniu entre marginais um gangue com o qual aterrorizou a região, acabando contudo por ser capturado e executado. Da sua história emergiu a visão que Kleist apresentou em fragmentos a partir de 1808 e publicou em livro em 1810, a sua história tendo conquistado a atenção de muitos desde então, entre os quais Kafka, de quem se diz que terá feito duas leituras em público do texto de Kleist.

O Michael Kohlhaas de Kleist já tinha cativado a atenção de Volker Schlondorf num filme de 1969. Agora, pouco mais de dois séculos sobre a sua publicação, uma nova abordagem chega num filme que junta à herança literária e à evocação da figura histórica um notável trabalho de direção de fotografia e de direção artística e conta como protagonista (que por vezes afoga tudo o resto) o ator dinamarquês Mads Mikkelsen, o vilão de 007 Casino Royale e também o protagonista de A Caça, de Thomas Vinterberg.

Com um ritmo lento – afinal estamos longe da azáfama de inícios do século XXI – A Vingança de Michael Kohlhaas começa por nos colocar no momento e no local que desencadeiam os acontecimentos. Ao pagar um tributo (aparentemente indevido) para passar as terras de um Barão – que lhe fica com dois cavalos e cujos homens matam depois um dos empregados do mercador – desencadeia-se um processo de raiva, com sede de vingança amplificada pela morte, na corte, da mulher de Kohlhaas. Como a história (ou a sua mitificação) recorda seguem-se cenas de terror e morte, em busca de um sentido de justiça por vias menos canónicas.

O filme habita quase todo ele paisagens ao ar livre e, quando nos leva para os espaços de casas, castelos ou mosteiros, fá-lo usando reais construções antigas, confrontando assim a memória dos tempos históricos com o presente em que o filme é rodado. Há contudo um cuidado na construção de uma sugestão de verdade de época que tanto passa por um guarda-roupa realista – distante porém das vestimentas de corte à Hollywood de tantos outros filmes históricos – como repara que, num bosque da Saxónia do século XVI, não há cabeleireiro nem sais de banho. O desconforto do frio, do relento e de habitações sem “comodidades” junta um sentido de verdade às imagens, numa comunhão assim perfeita com os vários olhares sobre o espaço em volta, com uma direção de fotografia com personalidade (nos movimentos de câmara, nos enquadramentos, na luz e na cor) que representa mesmo um dos ganchos mais seguros do filme. Na cerimónia de atribuição dos Césares de 2014, para a qual partia com várias nomeações – entre as quais as justíssimas para Melhor Fotografia e Melhor Montagem –, o filme acabaria por vencer no (também cuidado) departamento do som, arrebatando os prémios para Melhor Som e Melhor Banda Sonora Original, destacando aqui o discreto mas interessante trabalho de Martin Wheeler, autor de uma música que, entre os espaços a céu aberto e o marulhar do vento entre as árvores, por vezes se dilui entre a paisagem que serve de cenário às imagens.

A evolução da história requer atenção, mas o texto vai surgindo ora nos diálogos ou no contexto, a um pastor que às tantas se cruza pelo caminho do mercador, cabendo uma crítica às suas ações que, na verdade, acaba por exacerbar a sede de justiça e vingança.

O realizador Arnaud des Pallières (que teve neste filme a sua estreia na competição em Cannes, em 2013) está por vezes demasiado focado no ator protagonista e quase não deixa respirar nem os que o acompanham nem aqueles contra quem se rebela. Mads Mikkelsen cumpre o papel, vestindo a pele de um justiceiro magoado mas por fora aparentemente imperturbável, mas que dirige a ira que o corrói para as ações com que leva medo e morte à região.

A Vingança de Michael Kohlhaas é um filme histórico diferente. Narração de uma vingança, valoriza o espaço, o tempo e a contemplação da alma motora da raiva transformada em atos violentos sem nunca tropeçar em sonhos de cinema de ação. E no fim é como um livro. A história está lá. Quem fica depois com ela somos nós.

“A Vingança de Michael Kohlhaas”
de: Arnaud des Pallières
com: Mads Mikkelsen, Bruno Ganz, Delphine Chuillot e David Kross
Distribuidora: Leopardo Filmes

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