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A possibilidade de um rapto

Texto: NUNO GALOPIM

O cenário de um eventual sequestro do escritor francês Michel Houellebecq, que correu como rumor quando este desapareceu de vista por uns dias em 2011, inspirou uma comédia desconcertante.

Se o escritor francês Michel Houellebecq cobrasse um euro por cada vez que um artigo de jornal usa a palavra “polémico” para o caracterizar nem precisava de concorrer ao euromilhões para sorrir perante uma fortuna fácil. A palavra, que tantas vezes é usada porque há quem julgue que chama atenções e que, de tantas “polémicas”, acabou com sabor de coisa banal, está longe de ser a que se pode aplicar a O Rapto de Michel Houellebecq, uma comédia desconcertante que, partindo de uma situação verídica, quando por uns dias, em 2011, o silêncio e ausência do escritor foi tomado como possível sinal de que tivesse sido raptado, constrói uma sucessão de situações e diálogos que, sob um conjunto de cenas de enquadramentos por vezes quase toscos e uma mise en scène que quase parece coisa de reality TV, consegue mesmo assim respirar bom humor e valentes doses de nonsense de fio a pavio.

Criado para televisão, e com aquela medida certeira que mora ali perto dos 90 minutos, o filme começa por nos apresentar um escritor entre a sua casa e o seu bairro, entre vizinhos e amigos trocando algumas palavras, ora sobre o que está a fazer ora o que tem feito, discutindo a dada altura que Mozart é sobrevalorizado. Já Beethoven é para si outra coisa. Tal como a discografia de finais de 60 de Janis Joplin.

O quotidiano tem a cadência e a intensidade dramática do dia a dia de qualquer um de nós, com o extra apenas no facto de Houellebecq ser o escritor que é. E sentado num banco de rua, a dada altura, está em silêncio a rever provas. O ritmo é interrompido quando, um dia, três matulões (dois de ginásio, um de dieta a menos) irrompem pelo seu apartamento, o amordaçam com fita e levam para uma pequena moradia nos subúrbios, onde aos poucos a mordaça e as correntes que o prendem vão desaparecendo, cigarro puxa cigarro, copo de tinto atrás de copo de tinto… Aos poucos o raptado estabelece uma vida entre os raptores, partilhando refeições e momentos de conversa, de poesia a rins cozinhados, passando por Auschwitz ou o genocídio arménio, falando-se de tudo um pouco.

O filme não quer ir mais longe. Limita-se por isso a sugerir como a partir de uma hipotética situação de rapto se coloca na berlinda e se dão uns dedos de conversa com um escritor conhecido pelo tom provocador de romances como Partículas Elementares ou Plataforma – e que acaba de ver entre nós ser lançado o mais recente Submissão (no qual imagina uma luta eleitoral entre a líder da Frente Nacional e um candidato de um ficcional partido muçulmano) – e que revela aqui um saudável sentido de humor e capacidade de autoparódia na forma como veste a pele de uma personagem na qual nunca é claro onde passa a fronteira entre quem é e a figura (dele mesmo) que ali interpreta.

Depois de uma terrível experiência na desoladora adaptação ao grande ecrã de A Possibilidade de Uma Ilha (que deixa claro que um escritor pode não ser o melhor realizador de uma adaptação ao cinema da sua escrita) e ao mesmo tempo que chega aos nossos ecrãs a Experiência de Quase-Morte, filme de Benoît Delépine e Gustave Kerverb que o tem também como protagonista, em O Rapto de Michel Houellebecq surge aquele que, mesmo longe de brilhante, representa o seu mais consequente episódio de envolvimento direto com o mundo do cinema.

“O Rapto de Michel Houellebecq”
de: Guillaume Nicloux
com: Michel Houellebecq, Luc Schwarz e Mathieu Nicourt
distribuição: Leopardo Filmes

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