Manoel de Oliveira (1908-2015)
Texto: NUNO GALOPIM
Era o decano. O grande e muito respeitado decano. Não apenas do cinema português mas de toda a sétima arte. O mais velho dos realizadores em atividade, mantendo um ritmo criativo impressionantemente regular. E vale a pena notar que entre os seus mais recentes filmes está mesmo O Gebo e a Sombra (de 2012), uma das suas obras-primas. Parece um cliché notar que tantas vezes foi mais reconhecido e aclamado lá fora que por estes lados (algo que o acompanhava desde o momento da sua estreia, em 1931), trazendo há poucos anos as celebrações do seu centenário uma certa unanimidade que contrasta até com o que de tão pouco unânime a sua obra alguma vez pretendeu mostrar. Aos 106 despedimo-nos de Manoel de Oliveira. Mas ficam os seus filmes, e nunca será tarde para os (re)descobrir.
Nasceu no Porto em 1908, numa família burguesa, e somou feitos sobretudo como desportista e frequentou uma escola de atores (fundada no Porto pelo italiano Radu Lupu) antes de descobrir uma paixão maior pelo outro lado das câmaras de filmar. Um documentário sobre a cidade de Berlim – Sinfonia de uma Capital (1927), de Walter Ruttmann fazer comBerlim – inspirou-o a olhar para a sua cidade como ponto de partida, começando-a a filmar, juntamente com um amigo e uma câmara então adquirida. E assim nasceu em 1931 o hoje histórico Douro, Faina Fluvial, não só um marco na história do cinema documental e primeiro passo na obra de Oliveira, mas também um momento que enceta um relacionamento do realizador com a cidade que teria expressão, entre outros, em títulos como Aniki Bobó (1942), O Pintor e a Cidade (1956) e, num registo com um cunho autobiográfico, Porto da Minha Infância (2001).
A estreia de Douro Faina Fluvial traz outra história já tantas vezes recordada, mas sempre interessante de evocar. É a história de como, ao ser apresentado em Lisboa, no âmbito do Congresso Internacional da Crítica, divide opiniões, entre a pateada vinda de pernas made in Portugal e o aplauso de figuras como Luigi Pirandello, entre outros convidados internacionais.
Dos tempos da juventude de Oliveira há memórias de tertúlias com outras figuras, entre elas nomes como os de Agustina Bessa-Luís ou José Régio, das quais é possível que se tenha aprofundado um interesse pela leitura e pela literatura em particular, revelando a sua obra cinematográfica uma das mais profundas experiências de relacionamento continuado entre a escrita literária e o cinema, em filmes que adaptaram ou tiveram como inspiração textos de autores como Almeida Garrett, Padre António Vieira, Agustina Bessa-Luís ou Raul Brandão, em diversos casos ensaiando e progressivamente aprofundando uma relação entre o grande ecrã e o teatro. Uma certa teatralidade tornou-se marca de um cinema de palavras pensadas. Não foi por acaso que a um dos títulos chamou mesmo Filme Falado.
Se acompanhamos o ritmo invulgarmente consistente e certo de produção que manteve entre os anos 80 e o início da presente década (entre 1985 e 2008 estrou uma longa-metragem por ano), vale a pena notar que, apesar de ser dono de uma filmografia que remonta a 1931, Oliveira assinou apenas uma escassa mão-cheia de filmes, entre os quais, além dos já referidos se apontam títulos marcantes como O Ato da Primavera (de 1963, com autoria partilhada com outros autores, entre os quais António Reis), O Passado e o Presente (que em 1972 rompeu um silêncio de seis anos) ou Benilde ou a Virgem Mãe (1975), este último uma adaptação de uma peça de teatro de José Régio.
Amor de Perdição (1979) e Francisca (de 1981, e a sua primeira colaboração com Agustina Bessa-Luís) alargam horizontes à tomada de consciência de um cinema que, aos poucos, conquista atenções, e ocasionalmente até momentos de sucesso na bilheteira. De então para cá tornaram-se marcos na história do nosso cinema – e da afirmação de uma carga autoral de alguma cinematografia europeia – filmes como Le Souiler de Satin (1985), Os Canibais (1988), Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990), A Divina Comédia (1991), Vale Abrão (1993), A Carta (1994), O Convento (1995), Vou Para Casa (2001) ou Singularidades de Uma Rapariga Loura (2008), sem esquecer o já referido O Gebo e a A Sombra, a sua derradeira longa-metragem (depois deste filme assinaria ainda a curta-metragem O Velho do Restelo, de 2014). E não é preciso ser especialista em aritmética para notar a idade em que a sua obra tem mais intensa produção e maior volume de prémios arrebatados.
Se em Jean Vigo ou Luis Buñuel teve referências importantes, a sua obra conheceu a afirmação de um caminho próprio não apenas pela consolidada construção de uma linguagem muito pessoal – nos temas, nos planos, na mise en scène, na valorização da palavra – e pela relação com os escritores, mas também da forma como desenvolveu um relacionamento com um grupo de atores, entre os quais se contam nomes como os de Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra, Isabel Ruth, Diogo Dória, Catherine Deneuve, Michel Piccoli, Irene Papas, Marcelo Mastroiani, Chiara Mastroiani e, nos anos mais recentes, o neto Ricardo Trêpa. Pedro Abrunhosa foi figura em relevo no elenco de A Carta (1999), devolvendo a cortesia assinando, em 2002, um teledisco (ou antes, um filme) para a canção Momento. Fez filmes até ao fim. Por fazer ficou A Igreja do Diabo, a partir de Machado de Assis…
Quase toda a gente achava que tinha uma opinião sobre o seu cinema, devendo ser curioso verificar quantos de facto alguma vez se terão sentado numa sala escura para ver sequer um dos seus filmes. Alguém imagina hoje que um filme tão belo e arrebatador como Aniki Bobó tenha passado a leste dos entusiasmos da bilheteira quando estreou, a ponto de afastar Manoel de Oliveira do cinema por alguns anos (concentrando então atenções nos negócios da família)? Como este há filmes a merecer novas oportunidades numa filmografia vasta, em grande parte distribuída já em formato de DVD, adivinhando-se nos próximos tempos as (merecidas) homenagens que surgirão na forma de edições da obra em falta e ciclos que o devolverão às salas escuras. E é aí, com os seus filmes, que lhe faremos a homenagem de que certamente ele gostaria.
Uma nota pessoal:
Só conheci pessoalmente Manoel de Oliveira já ele ia com uns dias para lá dos cem anos. E a verdade é que até nos podíamos ter cruzado muito mais vezes. Durante 20 anos trabalhei na redação do DN, a menos de um quarteirão de distância do hotel onde ele sempre ficava de visita a Lisboa e não poucas vezes jantei no mesmo restaurante de bairro (ali perto) onde ele também tinha por hábito fazer as refeições. Lugares que, sei, lhe fizeram ambos carinhosa festa por alturas do centenário e o gostavam de ter como figura da casa. Naquela semana tínhamos feito uma edição especial que lhe era dedicada e ele entrara no edifício do jornal para agradecer as palavras. Fui esperá-lo à porta. Falou de várias memórias. Umas mais nítidas, outras já turvas. “Mas quando são de cinema lembro-me bem de tudo”, explicou então. Fez sentido. Gostei de o ouvir.

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