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Kim Gordon: a versão dela

Texto: LIA PEREIRA

Depois do fim do casamento com Thurston Moore e do adeus dos Sonic Youth, Kim Gordon escreve as suas memórias. E, felizmente, há muito mais do que corações partidos na sua biografia.

Quem começar a ler Girl in a Band, a biografia de Kim Gordon, na esperança – ou no receio – de ficar a conhecer os pormenores sórdidos do divórcio do casal Sonic Youth sentir-se-á provavelmente enganado. A separação de Gordon e Thurston Moore, que conduziria ao final de uma das bandas mais respeitadas do rock independente americano, poderá ter sido a causa próxima, ou o detonador, da escrita deste livro, mas a baixista, vocalista e artista visual dedica-lhe um espaço limitado e, sobretudo, demarcado: o primeiro capítulo, curiosamente intitulado The End, onde recorda o último concerto dos Sonic Youth, numa altura em que já não trocava palavra com o marido, e um dos derradeiros capítulos, no qual desvenda alguns pormenores sobre o colapso do seu casamento (e as medidas que, em vão, tomou para salvá-lo). Entre os fãs dos Sonic Youth há quem tema ler esta biografia e tingir a imagem que mantinha do casal de ouro do indie americano (Gordon prefere sempre a expressão punk, e detém-se frequentes vezes na análise de géneros musicais e respetivas estéticas). No entanto, não há aqui, a nível conjugal, praticamente nada que a imprensa não tenha já destacado, ou que não seja do domínio invariavelmente humano – se não os viam como deuses, os leitores provavelmente não passarão a encará-los como demónios ao cabo destas quase 300 páginas.

A voz narrativa de Kim Gordon, nascida há quase 62 anos no estado de Nova Iorque, revela-se segura e sedutora, por vezes minimalista. É com toques rápidos mas precisos que nos pinta o seu percurso de vida, da complicada história familiar – o irmão mais velho sofre de doença mental e teve de ser entregue, ainda muito jovem, aos cuidados do Estado pelos próprios pais, em desespero – à paixão pelas artes, musicais e visuais. Ainda hoje, Kim Gordon diz não se considerar uma música, mas sim uma artista visual com “uma boa noção” de espaço e uma apetência natural pela dança, provocação e procura de tudo o que possa ser visto como novo, diferente ou estranho.

Mesmo para quem apenas conheça essas mecas do cinema ou da televisão, é ainda fascinante a descrição que Kim Gordon oferece de Nova Iorque, a metrópole a que associamos os Sonic Youth, mas também da zona da Califórnia onde cresceu (considerando-se mesmo, a páginas tantas, uma “loura típica da Califórnia”), fazendo contrastar aqueles dois polos da vida cultural norte-americana com observações incisivas e personalizadas.

Quer quando fala da casa em Northampton, no estado do Massachusetts, para onde foi viver, ainda com Thurston Moore e a filha de ambos, Coco, quer quando recorda o processo de gravação de vários álbuns e vídeos dos Sonic Youth, Kim Gordon nunca é enfadonha, antes oferecendo uma visão sensível e pormenorizada dos locais e dos eventos – confessando-se extremamente tímida e eternamente marcada pela relação com o irmão problemático, a voz de Bull in the Heather não tenta passar por heroína, ou sequer “sobrevivente”, admitindo fraquezas e evitando também, com elegância, o papel de vítima.

Carregado mas não em demasia de alusões a grandes figuras com quem se cruzou – o amigo Kurt Cobain à cabeça, mas também a “manipulativa” Courtney Love ou o compositor Danny Elfman, de quem foi namorada – Girl In a Band é um relato honesto de uma mulher que chega aos sessentas a sentir-se «alguém completamente novo». E isso só pode ser bom de testemunhar.

Kim Gordon
“Girl In a Band”
Faber & Faber, 273 páginas
ISBN 978 -0-571-31383-9
4/5

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