Últimas notícias

Três filmes para evocar o fim da guerra

Texto: NUNO GALOPIM

Setenta anos depois do dia em que o general Jodl assinou a rendição incondicional da Alemanha nazi, evocamos, a partir de três filmes, os dias de desencanto de um povo derrotado.

"A Queda"

Faz hoje 70 anos que um documento foi assinado com vista a que as armas se calassem na Europa após quase seis anos de um conflito devastador que ceifou milhões de vidas, revelou novos e aterradores sinais do lado mais sombrio da alma humana, apagou importante património do mapa e redefiniu toda a geografia política do velho continente. As mortes de Mussolini (executado a 28 de abril, com o corpo depois exposto pendurado de pernas para o ar numa praça em Milão) e Hitler (que se suicida no seu bunker no dia 30, pedindo que o seu corpo e o de Eva Braun fossem imediatamente carbonizados para evitar a repetição do que sucedera aos restos mortais do ditador italiano) confirmavam o termo iminente do fim da resistência das tropas do Eixo numa Europa na qual o avanço dos aliados era já imparável.

Goebbels foi o novo Chanceler por apenas um dia, mas suicida-se a 1 de maio, juntamente com a mulher e os seis filhos. Um dia depois as tropas alemãs em Berlim rendem-se. Ao longo dos primeiros dias de maio várias frentes de batalha alemãs fazem o mesmo gesto. Hermann Göring, o mais destacado vulto ainda vivo da antiga hiearquia do Reich, é preso dia 6. E no dia 7, em Riems, o general Jodl assina um acordo de rendição incondicional de todas as forças alemãs, que expressa um fim de todas as operações do exército alemão às 23.01 do dia seguinte. O fim da resistência não é imediato, havendo pequenos núcleos de resistência, o último sendo apagado a 20 de maio, após uma prolongada luta numa ilha holandesa. Donitz, a quem Hitler havia passado por testamento a presidência do Reich, continuou a agir como chefe de Estado a partir de Fluensburg, no norte da Alemanha, até dia 23, recebeu indicação de que o seu governo estava dissolvido.

Durante e após o conflito o cinema esteve ativo e fez da II Guerra Mundial o mais filmado e representado de todos os conflitos militares na história da sétima arte. Setenta anos depois da assinatura que decretou o fim dos combates na Europa (a guerra continuaria mais alguns meses no Pacífico), recordamos três títulos que evocam os dias do fim da guerra na Europa. Com a Alemanha por cenário, são três olhares que dividem atenções entre o desmoronar de uma velha ordem nas caves onde o poder se apagava e o quotidiano de um povo derrotado.

“A Queda” (2004)
De Oliver Hirschbiegel
Das várias representações da figura de Hitler na história do cinema esta é uma das mais marcantes de sempre. Baseado em relatos de Traudl Junge, a sua secretária nos últimos meses de vida, A Queda centra atenções nos últimos dias de vida de Hitler e, como ele mesmo o fez desde janeiro de 1945, as imagens habitam essencialmente os espaços claustrofóbicos do bunker que ele mesmo mandara construir, com grossas paredes de betão, a 12 metros de profundidade sob o edifício da nova Chancelaria. Numa magnífica interpretação de Bruno Ganz, a figura de Hitler que se nos apresenta é a de um homem que perdeu o sentido da realidade e, entre acessos de fúria, ordena ações militares já impossíveis de colocar em prática, acreditando num possível novo rumo dos acontecimentos tal e qual em tempos sucedera a Frederico II no fim da Guerra dos Sete Anos (facto não referido no filme, não deixando contudo as imagens de o mostrar num dos muitos instantes em que contemplava um retrato do velho monarca prussiano). Mais que de estratégias militares, o filme fala sobretudo do desnorte humano que se vive no bunker, a loucura suicida alastrando entre tudo e todos, o desmoronar de toda uma velha ordem implacável e orgulhosa caindo plano a plano à nossa frente, com um extremo cuidado realista na recriação das gentes, factos e lugares.

“Lore” (2012)
De: Cate Shortland
Estamos na Alemanha rural muito perto do dia da capitulação alemã. Um oficial alemão, de quem os dados que se vão juntando aos poucos fazem supor que terá tido um papel no Holocausto, entrega-se aos aliados, o mesmo o fazendo a sua mulher. Abandonados, os seus filhos, outrora respeitados, protegidos e talvez mesmo temidos dão por si sem nada do que antes era firme nas suas vidas. Para sobreviver, uma vez que em pouco tempo se torna evidente que o tom de deferência com que vizinhos antes tratavam os irmãos cedeu lugar à expressão de um certo desprezo no encarar do que a família antes representava, têm de partir. E seguindo a sugestão da mãe, rumar bem longe, para norte, a fim de buscar porto seguro na casa de um familiar. Sós, sem poder, sem comida, vulneráveis e desencantados, são a personificação de um povo derrotado.
A viagem pela Alemanha derrotada é o cenário que acompanha a ação. Uma viagem pelo campo, no qual a paisagem não é coisa bucólica e romântica, mas uma inóspita e desconfortável casa ao relento por onde os irmãos têm de passar. Pelo caminho encontram ora antigos partidários do regime que colapsou ou algumas das suas vítimas. Aos poucos, sobretudo para Lore, a mais velha dos irmãos, a verdade do que aconteceu começa a tornar-se assombrosamente nítida.

“Alemanha, Ano Zero” (1948)
De Roberto Rossellini
A guerra já terminou há quase dois anos (parte do filme foi rodado in loco, em 1947) e estamos de regresso a Berlim. O filme que completa a chamada trilogia da guerra que Roberto Rossellini iniciou em 1945 com Roma Cidade Aberta e depois continuou, em 1946, com Paisà, conhece aqui o mais cru dos retratos já feitos sobre a vida quotidiana na Alemanha depois da derrota. A cidade está em cacos, os escombros havendo apenas sido removidos das ruas para que o (escasso) trânsito pudesse retomar o seu sentido. Famílias vivem acotoveladas em apartamentos, entre uma precariedade total, com cenas diárias de luta pela sobrevivência que acompanhamos tendo por centro gravítico de toda a narrativa um jovem alemão, irmão de um antigo soldado que se mantém escondido em casa e filho de um pai acamado, que carrega nas costas a missão de, a cada dia, tentar trazer dinheiro ou comida para casa.
Numa das mais arrepiantes sequências do filme vemos o jovem protagonista a tentar vender gravações em disco de discursos de Hitler. O local onde encontra os possíveis compradores – soldados americanos – é o da Chancelaria, agora esventrada e vazia. E quando os toca num gramofone a mostrar que são de facto discursos, a voz do velho führer ecoa entre as paredes daquela que fora a sede maior do seu poder. Uma assombração ainda muito próxima, no seio de uma cidade destruída pela loucura do seu regime.

Deixe um comentário