Postais de Cannes (7)
Textos: JOÃO LOPES e NUNO GALOPIM
7. Através de títulos como Plataforma (2000), 24 City (2008) ou Histórias de Shanghai – Quem Me Dera Saber (2010), Jia Zhang-Ke tem sido um exemplar retratista da China, por assim dizer, forçando o realismo a integrar as perturbações de um delírio à beira do fantástico. No caso de Mountains May Depart, a sua solução tem tanto de observação metódica como de ironia política. Assim, seguimos as personagens principais (dois rapazes e uma rapariga) em 1999, celebrando as utopias do novo milénio, em 2014, reflectindo o presente da rodagem, e por fim em… 2025. O resultado é uma ficção científica em que a especulação, paradoxalmente, nunca abandona a mais rigorosa verosimilhança — a China como mãe silenciosa da angústia dos seus filhos. – J.L.
Este texto foi originalmente publicado no Sound + Vision
6.Uma das secções mais acessíveis do Festival de Cannes é aquela que todos os serões, pelas 21.00, propõe a exibição de um filme na Plage du Festival. Digo acessível porque a entrada é gratuita, tanto para quem desejar ficar numa das cadeiras de lona em frente ao grande ecrã, como para quem optar por se sentar no areal ao lado ou até mesmo ir acompanhando a projeção dos muros na Croisette. As condições de projeção são ótimas num ecrã que fica instalado mesmo em frente ao mar. O recorte da baía e os barcos compõem o resto do cenário. O som é bom e chega à Croisette, sem ser invasivo face ao que logo depois ali acontece. As sessões decorrem na mesma altura em que o Palais, ali ao lado, acolhe as galas da noite, com dress code. Tão perto e mais diferente não seria possível. No domingo passaram as duas partes de Ivan, O Terrível, de Sergei Eisenstein. Era caso para dizer Eisenstein on the beach… – N. G.
5. Espantoso actor: Géza Röhrig interpreta Saul Ausländer, um Sondkommander do campo de Auschwitz, quer dizer, um dos elementos da “elite” judaica que os nazis obrigavam às tarefas correntes da sua máquina de extermínio. No centro de Le Fils de Saul, ele representa a odisseia de alguém que, no meio do horror quotidiano, descobre o cadáver do seu próprio filho. Como descrever o filme do estreante húngaro László Nemes? Talvez começando por dizer que nele se evita a questão da própria “descrição” — esta é a saga terrível de um universo em que a crueldade do vivido está, momento a momento, colada ao silêncio definitivo da morte. Incluir Nemes no palmarés da 68ª edição do Festival de Cannes será, talvez, uma exigência cinematográfica e um gesto eminentemente político. JL
Este texto foi originalmente publicado no Sound + Vision
4. Stanislas Merhar e Clotilde Courau definem um casal como qualquer outro… Porventura mais do que nunca, Philippe Garrel procura essa (aparente) banalidade como raiz do seu drama, a ponto de explorar em L’Ombre des Femmes (abertura oficial da Quinzena dos Realizadores) os lugares-comuns do mais básico machismo. Ironizando ou não com as palavras, podemos dizer que o seu cinema continua a mostrar que nenhum lugar é comum — a relação entre dois seres é uma arte pesada, sem determinismos fáceis, todos os instantes ameaçada pela derrocada. Enfin, l’amour — isto não é uma telenovela, podem crer. JL
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3. No ano do centenário de Ingrid Bergman o rosto da atriz recebe-nos pelas ruas de Cannes. Não há loja, bar ou restaurante que não exiba o cartaz da 68ª edição do festival, dominado pelo branco, com a fotografia da atriz e discreto lettering a azul claro, os cartões de acreditação de jornalistas ou profissionais da indústria do cinema deixando claro quem pertence à multidão de forasteiros que cruza constantemente as artérias centrais de Cannes. Se as sessões de cinema se espalham por alguns lugares sobretudo entre a Croisette e Rue d’Antibes – onde não deve haver loja conhecida que não esteja representada – há eventos em paralelo um pouco por todo o lado, de lançamentos de livros e edições em DVD a acções promocionais quanto baste. Aqui vemos Ingrid Bergman, numa das entradas do Palais (a que dá acesso à sala Debussy, para ser preciso). NG
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2. Há filmes que nos legam uma imagem que excede a própria visibilidade da imagem: dão a ver uma força, ou melhor, uma verdade que não tem nome, mesmo se se confunde com a singularidade radical de um corpo. Rod Paradot é uma dessas imagens. No filme de abertura de Cannes, La Tête Haute, de Emmanuelle Bercot, ele interpreta um adolescente marcado por uma cruel história familiar e muitos episódios de delinquência. E não é das menores proezas sustentar o confronto com Catherine Deneuve (na personagem da juíza que acompanha os seus sucessivos processos), sem nunca ceder a qualquer cliché mais ou menos moralista ou banalmente gratificante — o filme não é banal, mas Paradot é maior que o filme. JL
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1. Memórias de Jacques Demy — a baía de Nice era o cenário, de uma só vez físico e mítico, do seu La Baie des Anges (1963), em Portugal selado como A Grande Pecadora. Sempre diferente, a luz é a mesma de sempre: cristalina e densa, prometendo uma mistura de encanto e desgaste — falta um dia para começar o 68º Festival de Cannes e Nice recebe-nos como se estivéssemos dentro de um filme. JL
Este texto foi originalmente publicado no Sound + Vision

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