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O duche frio de DSK

Texto: JOSÉ MIGUEL SARDO

E se a famosa empregada do Sofitel de Nova Iorque não tivesse levado Dominique Strauss Kahn a “atirar a toalha” na corrida às presidenciais francesas? O romance ‘O Barulho do Duche’ imagina um futuro alternativo para o antigo patrão do FMI, enxaguado da polémica, naquele dia de maio de 2011 em que Nafissatou Diallo descobriu a tempo que não estava sozinha no quarto 2806.

No romance, Le Bruit de la Douche, publicado hoje em França, o jornalista político David Desgouilles ousa imaginar o país governado por Domique Strauss Kahn a virar as costas à zona euro só porque uma empregada de um hotel novaiorquino decidiu não encarar, na véspera das primárias do PS, em 2011, um dos políticos socialistas, até então, mais populares de França. Uma possibilidade que parece hoje roçar o inimaginável quando um livro protagonizado por DSK poderia figurar mais facilmente nas livrarias, ao lado das 50 sombras de Grey ou dos estudos de psicologia sexual, do que na secção dos ensaios de Política ou de Economia.

Ironia do destino, sabiamente reescrito por Desgouilles a partir desse momento de divergência da história, em vez da imprudente imigrante africana que se tornou no símbolo da luta contra a líbido desenfreada do capitalismo, é outra mulher que vai bater à porta de um Strauss Kahn revigorado, à saída do duche, a caminho de Paris e da vitória nas presidenciais francesas. Um DSK imaculado ou simplesmente impotente face a um novo revês da história. Uma misteriosa Anne-Sophie Myotte, personagem fictícia sem sombra de luxúria, vai tornar-se na indispensável conselheira política de DSK, obrigando-o a ceder a alguns dos seus impulsos mais básicos de esquerda para poder derrotar o rival Nicolas Sarkozy, durante a campanha eleitoral de 2012, no terreno político do conservador – o liberalismo e o patriotismo “desinibidos”.

No romance histórico alternativo, Anne-Sophie, segundo o autor, “a verdadeira protagonista da história”, é uma socialista pragmática, uma companheira apaixonada mas também uma dominatrix ideológica com que Desgouilles vai flagelar uma esquerda francesa, criticada hoje na figura do atual presidente François Hollande (um dos principais beneficiados com o afastamento de DSK), que vacila entre as raízes históricas do partido e um liberalismo sob pressão, tanto da crise económica, como das decisões de Bruxelas ou do exemplo do “modelo alemão”.

Entrevistado pelo jornal conservador Le Figaro, que não poupou a oportunidade de lançar mais uma acha à fogueira de Hollande, o autor não esconde um certo prazer em perverter o curso dos acontecimentos para criar uma nova moral da história, quando o presidente alternativo DSK, num acesso de nacionalismo, decide “romper” com Angela Merkel e retirar o país da zona euro – “As minhas ideias não estão ausentes neste romance. Mas a palavra ‘manifesto’ é exagerada. Antes de tudo conto uma história. Uma história para distrair os viciados em política, mas também aqueles que se interessam menos pelo tema. O fio dos acontecimentos é também uma história de amor. Mas é claro que um admirador de Jean-Pierre Chevènement [esquerda liberal] será mais entusiasta em certas passagens que um simpatizante de Nathalie Kosciusko-Morizet [conservadora, direita social], isso é indesmentível”.

Se o livro de Desgouilles explora ao detalhe o futuro alternativo de DSK, sem a sombra do Sofitel de Paris, a obra volta a provar que o político francês, mesmo inocentado pelos tribunais das acusações de abuso sexual em Nova Iorque e de incitação à prostituição noutro hotel, o Carlton de Lille, continua a ser a presa ideal de todas as fantasias – como dominador ou dominado. Fiel ao ponto de partida, o autor não hesita em imaginar a ação do presidente alternativo francês, com situações reais dos últimos anos, misturando crónica política e ficção “científica”, com uma grande dose de humor. Um retrato afinal da política e da sociedade francesa da segunda década do século, incapaz, apesar de tudo, de ceder às pulsões mais primitivas, em contradição com os seus próprios valores.

David Desgouilles reconhece ter reescrito a história sem um dos seus elementos essenciais quando se fala de DSK, “é verdade que me abstraí ao máximo da sua relação com as mulheres. Podia criar uma catástrofe. E depois era necessário que existisse Anne-Sophie Myotte para tomar posse do cérebro de DSK”, afirma no blog do canal France 3. Um exercício escorregadio que só serve afinal para reforçar a ficção. Sem deixar-se surpreender, como Diallo, com uma personalidade mundial recém-saída do duche, o leitor arrisca-se ao longo do livro, aqui e ali, a resvalar na realidade, como quem, ao olhar para o outro lado na casa de banho do quarto 2806, acaba por pisar o incontornável sabonete depois de se ter recusado a apanhá-lo do chão.

“Le Bruit de la Douche” de David Desgouilles, é hoje publicado em França pela editora Michalon.

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