Uma proposta demente
Texto: NUNO CARVALHO
Heinrich von Kleist (1777-1811), poeta e dramaturgo alemão, e protagonista de Amor Louco, da austríaca Jessica Hausner, escreveu um dia esta frase de grande lucidez sobre si mesmo: “Foi o inferno que me deu este meu meio talento: o Céu concede um talento inteiro ou absolutamente nenhum.” Um talento de certa forma enraizado nas trevas, sobretudo numa certa sombra espiritual, que no caso de Kleist está diretamente ligada ao seu temperamento melancólico. Já dizia Agustina Bessa-Luís que as trevas dão dificilmente respostas claras (ou seja, o caminho da escuridão pode chegar a respostas brilhantes, mas quase sempre de forma árdua e dificultosa). De facto, a “neurastenia” do autor de Michael Kohlhaas inspirou-lhe diversas obras notáveis, mas revelou-se também um “demónio” que o conduziu a um fim trágico.
O filme de Jessica Hausner centra-se precisamente na última etapa da vida do escritor, quando, toldado por nuvens negras, o seu espírito anseia por um fim. Desejando morrer por ser incapaz de viver, Kleist (Christian Friedel) procura uma espécie de alma gémea com quem estabelecer um pacto de suicídio. Depois de ver recusada a absurda proposta feita à sua adorada prima Marie (Sandra Hüller), uma jovem senhora da alta sociedade, o deprimido poeta tenta a sua “sorte” (cada um tem a sua noção de sorte…) junto de Henriette Vogel (Birte Schnoeink), uma mulher burguesa casada e com uma filha que, depois de alguns avanços de Kleist, e após lhe ser diagnosticada uma condição médica aparentemente incurável, se deixa levar e enfeitiçar (ou manipular) pela louca sugestão do desesperado escritor.
Em vez de abordar esta história inapelavelmente mórbida pela via do melodrama, o que só acentuaria ainda mais o seu negrume, Jessica Hausner opta inteligentemente por lhe conferir um tom de comédia negra. Um tom que faz sobressair o caráter objetivamente ridículo, absurdo e incrível da proposta demente e refalsada de um espírito “doente de cansaço e solidão” e com um “ridículo temperamento, [que] só desfruta daquilo que não existe”. O Kleist de Hausner é um diabinho de falinhas mansas que incrivelmente consegue persuadir, sob uma capa ardilosamente romântica, uma mulher ingénua, sugestionável e hipocondríaca de que o crime que vai cometer tem alguma coisa a ver com amor. Do ponto de vista clínico, este amour fou pseudorromântico não é mais do que um caso de folie à deux. Pelo meio, e apoiada num estilo visual cuja estética artificiosa remete para a pintura mas também para o próprio sentido “artificial” dos sentimentos do protagonista, a realizadora (também autora do argumento) junta algumas achegas que contribuem para fazer de Amour Louco uma reflexão sobre os perigos e os malefícios do idealismo, nomeadamente através de comentários que ecoam a “nova” ordem imposta pela Revolução Francesa e veementemente rejeitada pelas elites berlinenses (a ação do filme tem lugar na capital alemã entre 1810-11). Exemplo disso é uma cena de um serão em casa de Henriette Vogel em que um dos partícipes diz: “A tentativa de reformar o nosso Estado segundo o exemplo francês é um ultraje à nossa conceção de justiça. Aquilo a que chamam igualdade é, na realidade, injustiça, e o que chamam liberdade é uma armadilha. Na Prússia, o Estado feudal levou séculos a ser construído e representa uma ordem naturalmente harmoniosa. Porquê abandoná-lo? Por causa das ideias míopes de um punhado de sonhadores que se dizem republicanos ou democratas? Sonhadores que não repararam que a revolta francesa fracassou!” Num certo sentido, o demónio que impôs a Kleist um ideal romântico mórbido e insano com consequências trágicas e lamentáveis é da mesma estirpe daquele que inventou a (demo)cracia moderna (que, nalguns aspetos, não deixa de ser o sistema do demo…)
“Amor Louco”
Realização: Jessica Hausner
Elenco: Christian Friedel, Birte Schnoeink, Stephan Grossmann, Sandra Hüller
DVD/Alambique

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