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Humanidade à deriva

Texto: DIOGO SENO

Podemos encontrar dois filmes no novo “Cães Errantes” de Tsai Ming-Liang. O primeiro é um drama contemplativo do quotidiano de um pai e seus dois filhos. O segundo é mais simbólico e imperscrutável.

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Parece haver dois filmes em Cães Errantes. E estão mais ou menos separados e equilibrados no que diz respeito a duração, embora haja partes do segundo, mais discretas, no primeiro. O primeiro é um drama contemplativo, um olhar fragmentado mas muito concreto do quotidiano de um pai e seus dois filhos. O segundo é mais simbólico e é o menos interessante, mais imperscrutável.

Enquanto o pai (interpretado por Lee Kang Sheng, habitual colaborador e actor de Ming-Liang), passa os dias a segurar um cartaz (a apartamentos de luxo) os filhos deambulam nos supermercados. Esta família, votada a uma vida de pobreza extrema, encontra-se sobretudo à noite, para as refeições e para a procura de espaços onde realizar as suas necessidades higiénicas e dormir. As suas interacções são breves, o filme, exceptuando uns parcos diálogos, vota-as ao silêncio e às acções repetitivas. Há afectividade nesta família, particularmente entre os irmãos, apesar das condições cruéis em que vivem.

A desolação (e indiferença) da paisagem, sobretudo da paisagem urbana, é contínua. É por entre escombros que as personagens caminham de dia e à noite, à procura de abrigo da fustigante chuva. Os elementos – sobretudo o vento e a água – ora estão poluídos ora são inclementes. Circulam de plano para plano, tal como os sons de fundo: o vento que quase derruba o pai, enquanto este segura o cartaz, transforma-se no ar que seca as mãos do filho num secador de casa de banho, o barulho do trânsito é omnipresente, está nas deambulações diurnas das personagens, e o som da cidade deita-se com elas à noite.

Num filme de planos maioritariamente fixos, uns mais breves, outros mais longos, um movimento acaba por parecer possante: uma praia banhada numa luz dourada, onde passeia a família, com um breve movimento, transforma-se em desolação, quase o cenário de um filme pós-apocalíptico. É um filme “de fim” (e o pessimismo, a relação paternal, bem como as “ruínas humanas” que retrata, fazem lembrar vagamente O Cavalo de Turim do húngaro Bela Tárr) ostensivamente formalista e bem realizado, no qual parece haver um humanismo radical, um grito enfurecido contra a indiferença e a injustiça, que culmina na impressionante cena do pai a comer, exasperadamente, uma couve onde os filhos tinham desenhado uma cara (na tentativa de evocação de uma presença adulta feminina). É uma cena onde se entrevê erotismo, raiva, culpa, desespero, brilhantemente interpretada por Lee Kang-sheng.

Começam então a aparecer as figuras femininas, e embora a sua relação com as crianças fique por desvendar, elas parecem simbolizar uma espécie de maternidade possível (ou serão “fantasmas”?) nesta deriva.

A indefinição destas personagens, bem como as suas duas cenas a olhar para um mural (com uma paisagem), ambas longuíssimas, parecem atrair o filme para um ambiente mais nocturno, de um simbolismo forçado, com que se conclui o filme.

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