O anjo depressivo da literatura
Texto: JOÃO SANTANA DA SILVA
Quando, no dia 14 de abril de 1965, foram executados Perry Smith e Richard Hickock, o escritor norte-americano Truman Capote pôde, finalmente, descansar. Entregou a versão final do seu A Sangue Frio, que seria inicialmente publicada na revista norte-americana New Yorker e, no ano seguinte, em livro. O preço a pagar pela pesquisa para esse livro, uma pesquisa que o obcecou e consumiu criativa e emocionalmente, e que obrigou a adiar a publicação até à execução dos condenados – verdadeiros protagonistas da obra –, foi ter estado quinze anos sem quase escrever e publicar. A súmula literária desses anos, pelo menos os originais, pode ser encontrada em Música para Camaleões, publicado originalmente em 1980, quatro anos antes da morte do autor.
Por mais que se possa elogiar este livro e discutir qual é o seu verdadeiro atrativo, o melhor texto de Música para Camaleões é, muito provavelmente, o prefácio. Sim, o prefácio. Que é assinado pelo próprio Truman Capote. É nele que se vê, de forma menos artificiosa, as profundas angústias do escritor. A tristeza. O perfecionismo até na criação de uma persona literária, a sua, que se poderá considerar a personagem mais trabalhada deste génio depressivo que soube, na sua escrita de não ficção, dar lugar aos outros, dar voz aos desconhecidos que ele achava que não deviam desaparecer desta terra fria sem deixar, pelo menos, uma história aos leitores.
Independentemente do verniz aplicado a qualquer registo autobiográfico, Capote estará a ser francamente rigoroso quando fala de como começou a escrever, aos oito anos: “[…] a verdade é que havia apenas quatro coisas que me interessavam, a saber: ler livros, ir ao cinema, fazer sapateado e desenhar. Até que um dia comecei a escrever, sem me dar conta de que me acorrentara para o resto da vida a um amo ilustre mas impiedoso. Quando Deus nos concede um dom, concede-nos também uma vergasta, e a vergasta destina-se unicamente à autoflagelação”.
Para quem reconhece a superioridade estética da sua escrita de não ficção sobre a literatura de ficção (contos e romances), Capote faz ainda um reparo interessante sobre uma descoberta da sua infância: “Na verdade, os textos mais interessantes que escrevi naquele tempo foram as banais observações do dia a dia que registei no meu diário. Descrições de um vizinho. Longas reproduções ipsis verbis de conversas que ouvira. Mexericos da terra. Uma espécie de relatos em primeira mão, um estilo de «ver» e «ouvir» que mais tarde me influenciaria imenso […]”. O escritor, nascido em Nova Orleães (Louisiana) em 30 de setembro de 1924, cresceu em diversos sítios, entre os quais o Sul dos EUA, o que lhe terá oferecido várias histórias e personagens para toda uma vida.
É ainda no prefácio que conta o seu momento de viragem mais definitiva para um novo registo literário. Deixando os contos em segundo plano, o sucesso da sua antologia Ouvem-se as musas (de 1956, por cá não traduzido enquanto volume autónomo, mas incluído em Os cães ladram, da Relógio D’Água) leva-o a abraçar o formato de reportagem como base de um novo estilo, quer na forma, quer na relação com os objetos da sua atenção e escrita. Segundo ele próprio, é um terreno pouco explorado, ao passo que a ficção estava relativamente saturada. “Em primeiro lugar, não me parecia que nada de genuinamente inovador tivesse ocorrido no domínio da prosa, ou sequer da escrita em geral, desde os anos vinte; em segundo lugar, o jornalismo como arte era um terreno quase virgem, pelo simples motivo de que muito poucos artistas literários alguma vez escreviam narrativas jornalísticas, e, quando o faziam, optavam pela forma de relatos de viagem ou autobiográficos”, diz o escritor.
Década e meia depois de encerrar o capítulo A Sangue Frio, eis que Capote se lança neste Música para Camaleões, onde, diz ele mesmo, “postei-me no centro do palco, e reconstituí, de modo sóbrio, despojado, conversas corriqueiras com gente banal: o porteiro do meu prédio, um massagista no ginásio, um velho amigo dos tempos de escola, o meu dentista”. O resultado, afinal de contas, não é bem esse. Mas a intenção está lá. De algum modo, Truman Capote – narrador e personagem – está no centro da ação. Já não é “o jornalista” (na terceira pessoa e sem nome) como em A Sangue Frio, mas sim o catalisador, a frio, da história, apesar de serem as outras personagens que oferecem alguma alma a textos de não ficção meio inócuos.
Música para Camaleões é, simultaneamente, o título do livro e do primeiro conto de uma série de seis que abre a antologia. Cinco contos fracos, que facilmente se esquecem, à exceção de um ou outro. Uma dessas exceções é o brevíssimo encontro (e brevíssimo conto) de um viajante que regressa de um casamento quando o carro em que viaja bate contra uma árvore. Escapulindo-se do local, e das discussões do casal que ocupava os bancos da frente, procura uma casa até que finalmente a encontra e, espreitando pela janela, se depara com uma senhora idosa, “uma anciã de cabelo branco e macio e rosto redondo e simpático” que lia um livro à lareira, com “um gato enroscado no regaço e vários outros a dormitarem-lhe aos pés”. Numa conversa sobre autores favoritos e relação pessoal com esses autores, apercebe-se da profunda solidão da velhota, até que ela lhe faz uma revelação terrível, mostrando-lhe o conteúdo de uma enorme arca frigorífica. A outra exceção é o conto “Fulgor”, sobre um rapaz que vive fascinado por uma mulher feia mas que, dizem, possui poderes mágicos, e, por isso, o leva a cometer um terrível disparate para que possa conceder-lhe o seu mais íntimo desejo.
A segunda parte do livro é o famoso “Caixões em miniatura”, considerado a peça mais valiosa desta coleção, mas que acaba por ser uma pequena desilusão pela relação entre expectativa e refinamento – é simplesmente muito longo, arrastando uma narrativa forte para um extensão de telenovela. Ainda assim, é uma das mais expressivas incursões de Truman Capote num imaginário southern gothic, que reflete o ódio e a violência gratuita que se podiam então (e ainda se poderão) encontrar nos confins das regiões rurais do Sul dos Estados Unidos. Prova disso é a ominosa descrição do homicídio do casal Roberts, que lhe é dada por Jake Pepper, um detetive da polícia estadual: “Tudo aconteceu numa manhã quente. Tórrida. Por isso, eles devem ter ficado espantados quando saíram de casa para entrar no automóvel e deram com os vidros todos fechados. Fosse como fosse, entraram os dois no carro, cada qual pela sua porta, e, assim que se instalaram lá dentro… pimba! Um emaranhado de cascavéis fulminou-se que nem um relâmpago. Encontrámos nove cascavéis das grandes dentro daquele carro. Todas tinham sido injetadas com anfetaminas; estavam enlouquecidas, morderam os Roberts por toda a parte: no pescoço, nos braços, nas orelhas, nas faces, nas mãos. Pobre gente. Tinham as cabeças enormes, inchadas que nem abóboras da Noite das Bruxas pintadas de verde. Devem ter morrido quase instantaneamente. Espero bem que sim”. É uma das passagens mais terríveis, mais assombrosas, que me lembro de ter lido em muitos anos.
O capítulo “Caixões em miniatura” é descrito, logo no próprio livro, como “Relato não ficcional de um crime americano”. Esse crime é referido por Truman como sendo um acontecimento real, parte de um conjunto de assassinatos que ocorriam após as vítimas receberem, em casa, um caixão endereçado a si mesmas. O homicídio dos Roberts é apenas o primeiro de uma série, aparentemente não relacionada, de eventos do género que se vão sucedendo aos olhos de Jake Pepper e da sua modesta comunidade, uma “pequena cidade num pequeno Estado do Oeste”. No entanto, esta longa narrativa foi investigada por dois repórteres do London Sunday Times, que chegaram à conclusão de que os eventos que inspiraram “Caixões em miniatura” nunca teriam tido lugar. Ou seja, não seriam mais do que o fruto da imaginação de Capote, que partiu de um pormenor verosímil para uma mera construção ficcionada. A questão que se põe, é claro, prende-se com a natureza destes textos: deve a literatura de não ficção refletir a realidade por completo? Capote, por esta altura, achava que sim. Por isso, pode ser um esqueleto no armário, uma falha no seu mantra.
Por fim, a terceira parte do livro é a mais desequilibrada. Se, por um lado, reflete o registo mais despido de artifícios que Capote desenvolveu na década e meia anterior, por outro, também revela o lado mais ácido que deixou reinar nos últimos anos de vida, na preparação do seu romance Answered Prayers (por cá, traduzido como Súplicas Atendidas pela Dom Quixote), obra que nunca terminou. Desse manuscrito, chegou a publicar – em vida – uma parte, “La Côte Basque”, na revista Esquire, em 1975, onde punha a nu vários detalhes íntimos da vida das socialites que conhecia pessoalmente: Slim Keith, Gloria Vanderbilt, as irmãs Jacqueline Onassis e Lee Radziwill, entre outras. Essa atitude criou-lhe muitos inimigos entre a alta sociedade nova-iorquina, que o passou a ostracizar até ao final da sua vida.
Em “Retratos dialogados”, que fecha Música para Camaleões, há casos que vão buscar esse balanço que ganhou com a preparação de Suplicas Atendidas. Como é, por exemplo, a conversa com Marilyn Monroe, que relata em “Uma linda criança” (pois é…) e onde não só se sugere um lado inocente, quase infantil, por detrás do perfume sexual da loira e irresistível atriz, como insinua, através da sua própria personagem (o “TC”), que terá passado um “serão aconchegado” com Errol Flynn. Razão pela qual pode confirmar o comprimento do órgão com que, disse-lhe Marilyn, ia tocando nas teclas de um piano. E continua, fazendo o outing de algumas celebridades e revelando as aventurais extraconjugais de outras tantas.
Para compensar, há histórias simples e fabulosas (por isso mesmo) como a de Mary Sanchez, uma empregada doméstica que Truman Capote acompanha ao longo de um dia de trabalho nas casas dos seus patrões. Esta personagem fascinante, uma mulher de cinquenta e sete anos nascida na Carolina da Sul, viúva de um porto-riquenho, tira frequentemente charros da sua sacola para poder descontrair e vai oferecendo a Capote, que finalmente aceita. A descrição é pura poesia: “[…] senti que se apoderava de mim um delicioso demónio, que um júbilo tresloucado e maravilhoso me abraçava; o demónio fazia-me cócegas nos dedos dos pés, coçava-me o alto da cabeça, dava-me beijos quentes com os lábios rubros e açucarados, enfiava-me a língua em fogo pela garganta abaixo”.
Outro pequeno mas relevante episódio contado nestes “Retratos dialogados” é aquele em que é apanhado pela polícia após conversar com um assassino na prisão, Robert M. Os agentes tinham, diz, a intenção de o usar como meio para saber mais detalhes sobre o caso que o levou para trás das grades. “A questão principal, porém, era o facto de Robert M. só me ter feito todas aquelas confidências depois de eu lhe prometer que não usaria nos meus escritos nem repetiria a terceiros o que ele me contasse”, diz. “Traí-lo nestas circunstâncias teria sido moralmente desprezível”. Uma posição interessante, se tivermos em conta outros textos do livro e o famoso “La Côte Basque”.
Mas o ingrediente sempre intenso, mas latente, em Capote é a violência. Essa violência é multiplicada exponencialmente com a história de Robert Beausoleil. Mas não é uma violência óbvia para quem lê apenas este “E foi então que tudo aconteceu”. É preciso conhecer o caso de Charles Manson. O que não é difícil, visto ter tido cobertura mediática por todo o mundo quando, a partir de 1969, a “família Manson” (na verdade, um grupo sem ligações familiares), acreditando que vinha aí um apocalipse, uma guerra civil entre negros e brancos pela supremacia – aquilo que ele chamava o “Helter Skelter” –, começou uma série de homicídios para financiar o grupo e precipitar o pretenso conflito. Bobby Beausoleil é, então, uma das muitas pessoas que se juntaram a Manson e começaram a praticar crimes pela América, que vitimaram, entre outros, Sharon Tate, a esposa grávida do realizador Roman Polanski.
Truman Capote terá entrevistado Bobby Beausoleil na prisão, dando origem a este conto (conto de não-ficção, supostamente). “O que acontece, acontece. Tudo é bom”, afirma Beausoleil. “Consideras matar pessoas inocentes uma coisa boa?”, pergunta TC (uma espécie de alter-ego pouco subtil de Capote). “Quem disse que elas eram inocentes?”, responde Bobby, deixando-nos um calafrio. O seu sentido de moralidade distorcido, à imagem do líder da seita, é bem claro. “Se acontece, tem de ser bom. Caso contrário, não estaria sequer a acontecer. É assim que a vida flui, pronto. A vida move-se em conjunto. Eu movo-me com ela. Não a questiono”. Não questionou. Aos vinte e dois anos, foi condenado a prisão perpétua por homicídio. Ainda lá está.
Por fim, e fechando o ciclo aberto pelo prefácio, vale a pena ler o último “retrato” do livro. O retrato definitivo: o seu. Pergunta “TC” a “TC”: “Estás a referir-te àquele artigo de Autoentrevista em que a ideia é tu entrevistares-te a ti próprio? Fazes as perguntas e tu mesmo respondes?”. Sim, a ideia é essa mesma. É aqui que Capote fala de si mesmo. Já não tanto do seu percurso, mas de si mesmo. Faz uma verdadeira autobiografia emocional, falando de suicídio, de fantasias sexuais, dos seus fantasmas. Não é, de perto nem de longe, o melhor texto nem o mais memorável. Mas tem pérolas escondidas. Sobre o que Capote pensava de si mesmo. Sobre a imagem que queria projetar. De certa forma, há aquele misto de depressão e graciosa presunção que o caracterizam. Como quando pensa na hipótese de Deus existir e poder vir em seu auxílio. Viria? “Sim. Cada vez mais. Mas eu ainda não sou nenhum santo. Sou um alcoólico. Sou um toxicodependente. Sou um homossexual. Sou um génio. É claro que podia ser estas quatro coisas dúbias e, mesmo assim, ser um santo. Mas a verdade verdadinha é qu’inda não sou santo nenhum, nem por sombras, compadre”. Olhando para trás, dá vontade de o desmentir. É que, volvidos mais de trinta anos da sua morte, quase se poderia arriscar: se existir uma qualquer deidade que respeite as artes, Truman Capote estará, de certeza, entre os eternos anjos da literatura. Um anjo não reconhecido pela alta sociedade nova-iorquina, é claro.

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