Björk: memórias de uma exposição
Texto e foto: NUNO MIGUEL GONÇALVES, em Nova Iorque
Quando foi anunciada uma exposição temporária em jeito de retrospectiva de meados de carreira de Björk no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova Iorque, tudo parecia encaixar. Afinal de contas a islandesa desde sempre, mesmo antes da carreira a solo, com os Kukl ou The Sugarcubes, se apresentou como uma figura capaz de derrubar as fronteiras do que uma cantora ou compositora moderna deve ser no mundo da música. Björk nunca seguiu as regras do que se esperava de si, mesmo quando isso passou a ser, automaticamente, o esperado.
A sua capacidade de transfiguração e metamorfose vai muito além do arrojo e ousadia da penetrante voz que emana e da música que cria, muitas vezes isenta de uma estrutura identificável e, desse ponto de vista, quase caótica e robótica. E no entanto plenamente melódica, visceral e humana. Esta é apenas uma das características que fazem de seu nome um sinónimo da mais plástica e inquieta artista da pop contemporânea. A sua audácia visual acompanhou fidedignamente a música enquanto igual e não como mero complemento promocional: nos vídeos assombrosos assinados por alguns dos mais proeminentes realizadores da actualidade ou na criatividade totalmente desconcertante dos figurinos que iam marcando cada etapa em total parceria com estilistas, alguns hoje de renome.
Por isso esta exposição no MoMA tinha tudo para resultar. No entanto a crítica foi implacável na forma como atacou a iniciativa, mantendo sempre a figura de Björk incólume e imaculada, mas arrasando totalmente a do curador do MoMA Klaus Biesenbach, que parece ter caído das graças dos círculos mais exigentes dos habitués da cena nova-iorquina.
Visitando pela primeira vez o MoMA compreende-se de algum modo as vozes dissonantes. Este espaço é de tal forma um oásis de bravura e sedimentação da arte moderna, enquanto algo que ultrapassa a fugacidade da simples contemporaneidade, que nada para além da perfeição é aceite. Por muito bons que sejam outros espaços do género – e temo-los, em Londres ou outras cidades europeias… – não são o MoMA.
A exposição de Björk, que fechou portas no mês passado, estava dividida em três partes: Instruments, Black Lake + Cinema e Songlines. Esta última tinha, inexplicavelmente, um número limitado de espectadores diários o que obrigou uma segunda visita ao museu no dia seguinte, sacrifício feito de bom grado e que permitiu a contemplação das colecções do MoMA na sua plenitude. Instruments era uma simples montra dos inúmeros instrumentos musicais que foram acompanhando a carreira de Björk, muitos dos quais criados exclusivamente para si para um propósito muito particular, fossem eles a caixa de música transparente de Vespertine ou os aparatos sci-fi de Biophilia.
No segundo piso da exposição encontrava-se a sala de visionamento de Black Lake, a melhor e mais desconcertante canção do novo e soberbo Vulnicura. Num filme criado para dois ecrãs separados por uma espuma vulcânica que dispersava o som de forma imprevisível, Björk saía das profundezas da dor e da mutilação emocional, preparada para enfrentar de novo um mundo mais negro e inóspito. Este foi talvez consensualmente o ponto alto da exposição, fruto da colaboração actual da artista com o realizador Andrew Thomas Huang, agora disponível no YouTube juntamente com uma outra experiência: um vídeo filmado e visualizado em 360° para Stonemilker, onde acompanhamos as confissões de (várias) Björk(s) em duas paisagens islandesas. Outra inovação tecnológica que só reforça o seu estatuto de pioneira absoluta. No mesmo piso os visitante podiam-se deliciar com as duas décadas de vídeos por ela encenados, desde Human Behaviour de Debut até Mutual Core”de Biophilia. Num sala somente coberta por colchões e puffs acabou por ser o sítio de maior permanência daqueles que por lá passavam, tal era a nostalgia de rever obras de arte como All is Full of Love ou Where is the Line naquela que devia ser a sua morada fixa.
A maioria das críticas noticiadas recaíam para Songlines, um percurso supostamente interactivo pela discografia da cantora. A acompanhar uma narrativa lírica, (muito bem) escrita pelo poeta islandês e colaborador Sjon (mas que teria maior impacto se contada pela própria), estão diversos objectos iconográficos ou instalações de cada uma das eras que marcaram o lançamento de cada disco. O problema aqui é que, apesar do enamoramento que aqueles mais próximos da obra da artista possam sentir por experiência ao vivo tais obras, não há grande integração dos mesmos na história que está a ser contada e eles esgotam-se com uma rapidez por vezes desorientante enquanto a voz prossegue na marcação dos históricos passos de Björk.
Outro ponto positivo da exposição é o livro exclusivo absolutamente delicioso com ensaios e fotografias, composto por vários cadernos, um dos quais, o mais volumoso, é uma verdadeira viagem visual pela imensa carreira de Björk. E todo o restante merchandising apresentado na MoMA Store fará certamente as delícias dos fãs. A realidade é que apesar de todas as críticas negativas, umas plenamente justificáveis mas outras mero fruto de uma exigência que talvez se tenha tornado incomportável, é difícil não voltar a olhar para Björk de outra forma. E, tal como aconteceu em várias fases da sua carreira, esse olhar vai-se metamorfoseando e abrindo lugar para novas percepções e interpretações de algo que pensávamos já conhecer na sua totalidade. Björk, a meio da sua carreira, ainda tem tudo por desvendar. E se este “fiasco” serviu para que tal seja reconhecido e valorizado já valeu a pena.

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