Ensaio sobre a lucidez
Texto: NUNO CARVALHO
Publicado em 1942, O Estrangeiro (L’Étranger, no original) é o romance mais famoso de Albert Camus, e o seu narrador-protagonista, Meursault, uma das personagens mais analisadas e interpretadas na história da literatura moderna. O livro foi adaptado ao cinema em 1967 por Luchino Visconti e serviu de inspiração a The Man Who Wasn’t There (2001), de Joel e Ethan Coen. Curiosamente, este último título fornece uma chave de leitura que torna o esfíngico e opaco Meursault mais inteligível. Embora Jean-Paul Sartre tenha sublinhado, num texto explicativo de O Estrangeiro, que o homem absurdo, que Meursault corporiza, é uma figura que apenas “descreve”, sem interpretar (para ele, se não há mistério no mundo e a vida é absurda, não há nada para decifrar, nenhum sentido para encontrar) –, podemos, ainda assim, interpretá-lo como “o homem que não está lá”, um corpo por assim dizer eviscerado da alma. Mas, como bem o descreve Sartre, Meursault não é mais do que um “homem lúcido, indiferente, taciturno”. Se sente que não possui uma alma, isso mais não é do que uma manifestação de lucidez da sua parte, tendo em conta que a Alma (e também Deus) é o grande delírio da humanidade, ou seja, uma crença que não corresponde a um objeto real.
A renascida Arcádia, agora uma chancela da Babel, editou recentemente uma adaptação em formato de BD do romance existencial de Camus. O livro, da autoria de Jacques Ferrandez, é muito fiel à essência da conhecida história de Meursault. Com um desenho sóbrio e elegante que ilustra o osso da narrativa, O Estrangeiro condensa de forma satisfatória um livro que, apesar do seu estilo lacónico e direto, apresenta um lastro filosófico que não era fácil de transpor para uma banda desenhada. A história mantém-se igual, aberta à interrogação filosófica. A ação decorre na Argélia, na época em que ainda era uma colónia francesa, e centra-se em Meursault, um homem que, ao receber a notícia da morte da mãe, viaja até ao lar onde esta passara os últimos tempos para velar o corpo e participar no seu funeral. Depois disso, vai nadar e encontra uma ex-colega de trabalho, na companhia da qual vai ao cinema ver uma comédia e com quem tem sexo. Mais tarde, quando se encontra com um grupo de amigos na praia e o seu vizinho é esfaqueado por um árabe, Meursault dirige-se sozinho à arriba onde este se escondera e dispara cinco tiros sobre ele. Seguem-se as cenas da prisão e do julgamento. Meursault será condenado à morte, acabando no final por dizer: “Para que tudo fique consumado, para que me sinta menos só, resta-me esperar que no dia da minha execução haja muito público e que me recebam com gritos de ódio.”
Muitas interpretações se fizeram da personalidade de Meursault, nomeadamente psicanalíticas (que incorrem sempre no erro e na “menos-valia” do reducionismo), vendo no protagonista da novela de Camus um indivíduo provavelmente esquizoide ou alexitímico, fundando-se tal visão sobretudo na sua incapacidade de sentir (uma das suas expressões recorrentes cifra-se na frase “é-me indiferente”). Na verdade, mais ainda do que o assassínio que cometeu, o que choca o sentido moral do juiz é o facto de Meursault não ter chorado nem revelado emoções de dor no funeral da mãe. O meritíssimo chega mesmo a dizer que ele matou moralmente a mãe e que o seu crime é tão abominável como o do réu que vai ser julgado a seguir (um caso de parricídio). Houve muito boa gente que viu em Meursault um homem amoral. Mas não cremos que essa leitura seja acertada. O problema não é que ele não compreenda o bem e o mal. Acontece apenas que os seus conceitos de bem e de mal diferem dos da moral vigente. E ele recusa-se a quebrar o seu código moral. Meursault considera a vida absurda e indigna de ser vivida, mas valoriza a honestidade e a sua descrença num ser superior. Nunca ao longo do livro ele mente ou finge ter fé em Deus, nem sequer para salvar a sua pele. Na realidade, Meursault acaba por ser uma figura paradoxalmente crística. Lembremos as palavras de Albert Camus a este propósito: “Não erraríamos muito se lêssemos O Estrangeiro como a história de um homem que, sem qualquer heroísmo, aceita morrer pela verdade. E diria também, de novo paradoxalmente, que tentei delinear na minha personagem o único Cristo que merecemos.”

Deixe um comentário