Recordações da viagem
Texto: DANIEL BARRADAS
Discretamente, em 2012, era lançado um pequeno jogo independente, vendido exclusivamente na loja online da PS3. Journey joga-se por completo em cerca de duas horas mas tem mais impacto na nossa vida do que qualquer outro mundo virtual que se possa jogar durante vários meses. O sucesso entre a crítica foi imediato e o mundo dos jogadores divide-se entre quem já o jogou e quem o vai jogar. Daí que faça todo o sentido que a Sony o volte a disponibilizar agora na PS4.
Journey não é um jogo que se deva explicar porque não é exactamente um jogo, é uma experiência sensorial, muito mais perto de “Arte” com A grande do que da noção tradicional de jogo. Nele, começamos por ser uma pequena figurinha perdida num deserto. Ao longe, no horizonte, há uma montanha com uma estrela a brilhar. O nosso objectivo é chegar lá. Pelo meio há a viagem.
O que tornou Journey completamente distinto de outros videojogos foi a sua capacidade de criar momentos de extrema emoção e comoção. Quem não passou o último nível lavado em lágrimas, não tem coração. A primeira vez que se joga Journey não se esquece. É como um primeiro amor, uma montanha russa de emoções com que mal sabemos lidar.
Infelizmente, esse momento de absoluto desarme emocional que se sente na primeira viagem pelo jogo não volta em subsequentes passagens. A beleza visual continua lá mas aquele fluxo de adrenalina que vinha em conjunto com a sensação de descoberta torna-se sucessivamente mais pálido a cada nova passagem (a maravilha continua a ser a interacção online com outros jogadores).
Curiosamente, a melhor maneira de reavivar a nossa memória emocional é através da excelente banda sonora da autoria de Austin Wintory, um compositor que tem também trabalhado para cinema mas que se destaca especialmente pelo seu distinto trabalho com jogos. Journey é uma hora de música obviamente criada para acompanhar o jogo mas com qualidade mais do que suficiente para valer por si mesma. Note-se que foi inclusivamente a primeira banda-sonora de videojogo a ser nomeada para um Grammy.
A estrutura do jogo presta-se extraordinariamente bem para uma estrutura musical. Nos primeiros 28 segundos, enquanto a câmara roda em volta do protagonista, Wintory apresenta o seu o leitmotiv, a pequena frase musical que representa a personagem (um conceito introduzido por Wagner nas suas óperas do ciclo do Anel e desde então utilizado em todo o tipo de banda sonora.) A frase é apresentada na sua mais pura forma por um violoncelo. Depois, ao longo de um tour-de-force de uma hora, terá variações adaptadas aos diferentes ambiente e situações do jogo, ora soando mais japonesa quando tocada em flauta, ora mais árabe em alaúde e por aí em diante. A mais luxuriosa orquestração é obviamente a do último nível em que o leitmotiv é maravilhosamente repartido entre dois conjuntos de violinos, cada um com a sua versão rítmica do mesmo, que é depois ocasionalmente reatado por sopros, um espelho musical da acção onde que a nossa figurinha desliza entre nuvens e quedas de água.
Outro belo momento é a canção final, usada no rolar dos créditos, onde todas as ideias musicais e orquestrais convergem. É algo quase ao nível de Zbigniew Preisner, a lembrar vagamente a sua Song for the unification of Europe da banda sonora de Azul.
Para quem nunca jogou Journey talvez seja uma obra musical simples. Para os restantes funciona como um precioso pedacinho de âmbar onde ficaram preservadas as pequenas-grandes emoções da nossa viagem pessoal.
Resta notar que há neste momento excelente música a ser produzida para bandas-sonoras de jogos de video. Atente-se no belo trabalho de Gustavo Santaolalla (Brokeback Mountain), para The last of us, actualmente a ser também agraciada com uma edição de luxo em vinil.
A banda sonora de “Journey” pode ser ouvida por completo aqui
A edição em vinil é claramente dirigida a colecionadores, dividida em dois discos ilustrados com imagens do jogo. Pode ser comprada aqui

Deixe um comentário