Vida e morte de uma estrela
Texto: NUNO GALOPIM
Onde moram afinal as fronteiras, se é que a noção de fronteira ainda faz sentido no panorama musical deste início de século. Nico Muhly, com um pé em projetos “clássicos” e em colaborações pop, estará afinal de um dos lados de uma qualquer eventual linha que separe essa velha noção de mundos que outrora chegaram a viver quase de costas voltadas? Hauschka a que lado pertence? E que dizer de Bryce Dessner que ora grava com os The National ora apresenta obras orquestrais que edita pela Deutsche Grammophon? E Ryuichi Sakamoto, que tanto pode apresentar um recital para piano ou compor uma peça para orquestra como apresentar trabalhos que explorem as potencialidades das electrónicas? E Steve Reich, que partiu de duas canções dos Radiohead para criar Radio Rewrite? E Max Richter que viu música sua remisturada e lançada num máxi single? Ou Philip Glass que já compôs a meias com Aphex Twin, remisturou os S-Express, escreveu música para a voz de Mick Jagger ou fez arranjos para uma canção de Marisa Monte?… Tantos nomes e situações para chegar a apenas uma possível conclusão: a de que a noção de barreiras, tal como o muro que outrora morava em Berlim ruiu e hoje as ideias, gentes e experiências fluem. Na idade da comunicação global não fazia sentido que a música o não fosse também. O termo “clássico” surge hoje mais como uma lógica de arrumação. Nem sempre nítida e longe de precisa, é certo. Mas convenhamos que mais pacífico do que o “erudito”. E não me venham dizer que os bem “populares” Três Tenores ou André Rieu, por interpretarem obras de Strauss ou Puccini, nos deram discos mais “eruditos” do que os de uns Sonic Youth ou Sufjan Stevens… Pois não é por estas palavras que vamos resolver a taxonomia do presente. Mas à falta de melhor, fiquemos com o “clássico”, nem que como expressão contemporânea de todo um quadro de heranças.
O certo é que há todo um novo espaço de diálogos e ensaios a ganhar forma. Que tanto se materializa no modo como figuras com obra feita em bandas pop/rock se começam a aventurar nos terrenos da música de câmara ou orquestral ou no modo como alguns compositores estão a experimentar novas abordagens a ferramentas electrónicas em conjunto com formas musicais ou fontes instrumentais que associamos à história de outras épocas, e de um modo distinto do que Stockhausen e outros pioneiros o fizeram em meados do século XX.
É nesse quadro que podemos encontrar a obra de Roly Porter. Durante alguns anos, na primeira década deste século, partilhou a aventura Vex’d ao lado de Jamie Teasdale, editando dois álbuns e uma mão-cheia de máxis. A solo encetou um percurso em 2011 com Aftertime, disco no qual abdicou da arrumação rítmica que caracterizava a essência das electrónicas que praticara em duo, lançando demandas mais interessadas na exploração de texturas, integrando o ruído e sugestões cénicas. Dois anos depois, numa altura em que iniciava uma carreira em paralelo no cinema – assinando a banda sonora para In Fear, de Jeremy Lovering – mostrava no Festival de Aldeburgh (exatamente esse, o fundado por Benjamin Britten) – um programa conjunto com Cynthia Millar no qual escutava acontecimentos nas periferias do silêncio, incorporando heranças de tradições da música orquestral ocidental. E em 2013, fez-se (literalmente) luz, num álbum que, tomando o ciclo de vida de uma estrela como foco narrativo, todas estas experiências pós Vex’d se juntaram num ponto só. E o seu “big bang” aconteceu.
Dois anos depois a reedição de Life Cycle of a Massive Star permite-nos um reencontro com uma obra que assinala um episódio de reafirmação de novos caminhos para a música electrónica, aceitando heranças de vários tempos e lugares, um pouco como Ambrose Field há poucos anos promoveu num álbum que trazia ecos da música de Guillaume Dufay ao nosso tempo, embora sem uma tão específica localização das matrizes revisitadas que lhe serviram de fonte de inspiração.
Life Cycle of a Massive Star, que sugere o percurso de vida de uma estrela, da nebulosa inicial à fase gigante que precede a supernova que iniciará novo ciclo, junta um saber narrativo cinematográfico a um impacte cénico que sugere heranças da intensidade orquestral de um Wagner, juntando o ruído e a estática como sinal maior de uma realidade física que transcende o nosso espaço e dimensão, compondo depois uma visão de conjunto de história e “imagens” através de um bem arrumado design sonoro. O ciclo não perde contudo nunca uma dimensão humana apesar do espaço maior que a estrela “protagonista” sugere, traduzindo uma noção de principio e inevitável fim que define, afinal, aquele que é também – embora num plano de tempo mais reduzido – o nosso próprio ciclo de vida.
“Life Cycle of a Massive Star” está editado em LP e CD pela Subtext Recordings e está disponível em plataformas digitais para download.

Deixe um comentário