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Memórias desenhadas

Texto: NUNO GALOPIM

A primeira parte da autobiografia de Riad Sattouf apresenta em “O Árabe do Futuro” um olhar sobre a Líbia de Kadafi e a Síria de Hassad no formato de uma novela gráfica.

O esbatimento de fronteiras entre géneros e formas manifesta-se hoje em várias frentes da criação e o universo da banda desenhada não fica de fora desta vontade em estabelecer diálogos e cruzar linguagens. Nos últimos tempos não só temos assistido a investidas de um registo próximo da reportagem, como já este ano se observou novamente entre Le Château de Mathieu Sapin ou Les Esclaves Oubliès de Tromelin, de Sylvain Savoia, como até da divulgação científica, tendo a Gradiva acabado mesmo de publicar entre nós Cosmicomix, de Amedeo Balbi e Rossano Piccioni, sobre a história da descoberta do Big Bang. O Árabe do Futuro, série de que a Teorema agora lança um primeiro volume, encaixa noutra grande família com importante expressão recente: a da reunião de memórias autobiográficas num registo de graphic novel, do qual nos últimos anos chegaram até nós outros magníficos exemplos em Persepolis de Marjane Satrapi (que entretanto gerou um filme homónimo, assinado pela autora) ou Fun Home, de Alison Bechdel…

O Árabe do Futuro conta a história da infância do seu autor. Riad Sattouf, filho de mãe bretã e de pai sírio (conheceram-se quando ele fazia os estudos universitários em França), também conhecido pelo seu trabalho em cinema – é o realizador de Les Beaux Grosses, que entre nós estreou como Uns Belos Rapazes – relata neste primeiro volume a memória de verdadeiros choques culturais que a família sofreu quando o pai encontrou um lugar como professou na universidade em Tripoli (Líbia) e, pouco depois, nova colocação desta vez perto da sua cidade natal, na Síria.

Ao mesmo tempo que nota as diferenças de comportamentos – sobretudo o papel reservado à mulher nas sociedades árabes ou atitudes que fariam estremecer de horror o livro de estudo da higiene ocidental – observa atitudes de povos submetidos aos regimes que os dominam. O de Kadafi na Líbia. O de Hafez Al-Assad na Síria… Na sequência em Tripoli uma das características mais bizarras que se descreve é o facto de nenhuma casa ter chave e, portanto, estar à mercê constante de quem a queira habitar porque, supostamente, é um bem comum. Casa vazia, faz então lembrar aquela máxima dos tempos da escola que dizia: “quem foi ao ar perdeu o lugar”… E a mãe de Riad, educada em França e capaz de rebolar a rir quando o marido – um crente revolucionário – lê o “livro verde”, não tem outro remédio senão ficar em casa, para que de noite, não tenham de procurar outra para dormir…

A ideia de Riad Sattouf era a de juntar aqui aquelas que guardou como as mais vivas memórias desses dias, daí a profusão de marcas olfativas, auditivas e visuais, que guardou em si, dispensando assim operações de mergulho nas coleções de fotografias dos pais ou mesmo sessões de entrevistas como familiares (deixa esse modus operandi para um sem-fim de aborrecidos documentários autobiográficos que por vezes tentam a sua sorte no circuito dos festivais). Sendo contada pelo ponto de vista de um muito jovem Riad, a história não só transporta toda a carga de surpresas e estranhezas que os costumes novos levantam, como os desenhos mostram um ponto de vista mais próximo do chão que o habitual no olhar de uma adulto.

Sem procurar uma intelectualização do texto nem da sua visão sobre o contexto, a extrema simplicidade do traço, o tom direto das palavras e o frequente humor que nasce de várias situações, não deixam contudo de transportar uma sucessão de motivos de reflexão sobre as características das sociedades que retrata e do poder político que, no fundo, também as molda.

A grande capacidade da partilha de memórias que podemos, todos nós, estabelecer por afinidade ou contraste para com o que aqui se conta resulta assim num patamar extra de leitura que o livro sugere, da simples observação crítica do pequeno protagonista surgindo um veículo que transporta o nosso olhar daquele tempo e daqueles lugares para o presente em que lemos e podemos tirar conclusões.

E a coisa continuará. Em França acaba de ser publicado o segundo volume. E pelas palavras de Riad em algumas entrevistas recentes, fica claro que há ainda histórias a contar numa eventual terceira parte. Para já temos entre nós esta primeira. E ao ler o livro compreendemos porque acabou distinguido em Angoulême, afinal recebendo ali o mais alto aval que um livro de BD pode desejar.

“O Árabe do Futuro – Ser Jovem no Médio Oriente (1978-1984)”, de Riad Sattouf, está publicado, com tradução de Helena Guimarães, pela Teorema. ISBN 978 972 47 5023 1.

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