As senhoras da guerra
Texto: RUI ALVES DE SOUSA
Um dos títulos fundamentais do criativo e lendário Estúdio Ghibli, A Princesa Mononoke é uma das imagens de marca do seu realizador e foi, no ano do seu lançamento, o filme mais rentável de sempre nas salas de cinema japonesas. Pouco depois foi ultrapassado pelo campeão Titanic, mas curiosamente, Miyazaki voltaria ao primeiro lugar poucos anos depois, com A Viagem de Chihiro, cujo recorde de bilheteira no país ainda se mantém até hoje.
No entanto, tendo em conta a popularidade mediática ou não, A Princesa Mononoke é uma obra essencial do cinema de animação e do cinema oriental contemporâneo em particular. E mais do que isso, é a resposta definitiva para todos aqueles que continuam a achar que os “bonecos” são só para crianças – o filme é violento, profundo, e as dimensões dramáticas e mitológicas da narrativa escapam ao olhar dos mais novos. As imagens falam de uma outra maneira, sem precisarem dos diálogos, atingindo subtilezas na caracterização das personagens e dos ambientes que se tornaram um modelo para muitos outros estúdios de animação.
O filme mistura com inteligência vários elementos da cultura japonesa com a fantasia do imaginário mágico e das desventuras do protagonista, para conseguir criar uma narrativa envolvente que é mais universal do que estritamente ligada ao imaginário oriental. Situando-se no período histórico em que a dinastia Muramachi liderou o Japão (entre 1336 e 1573), a história fala-nos de deuses, maldições, rivalidades, ambiguidades e de jogos de poder. Mas acima de tudo, A Princesa Mononoke é um poderoso drama animado (mas com mais humanidade do que muito filme com gente de “carne e osso) que nos fala da eterna luta entre o homem e a natureza, entre a destruição provocada pela civilização e a preservação das espécies.
A intriga de A Princesa Mononoke, que entretanto se tornou num clássico moderno, fala-nos de Ashitaka, um rapaz que é atingido por uma maldição mortífera, e que por isso, parte numa grande jornada para descobrir uma fuga para o triste destino que o aguarda. Na sua viagem, encontra uma aldeia habitada por humanos, liderados por Lady Eboshi, e descobre a feroz rivalidade presente entre a população e os lobos que tentam proteger o seu habitat. Eboshi, por seu lado, só quer provocar a destruição do espírito da floresta para poder proclamar a vitória da humanidade sobre a natureza. E é assim que aparece a princesa que dá título ao filme, que foi criada pelos lobos, e que se irá revelar, aos olhos de Ashitaka, numa guerreira implacável contra os interesses desses outros humanos. Duas mulheres que representam, portanto, uma “guerra” muito real para o nosso tempo.
Mas os avanços e recuos das personagens do filme têm um cariz bem mais complexo do que este pequeno resumo consegue exemplificar, e a batalha negra que ambienta o filme é apenas um de muitos focos de interesse que encontramos nesta interessantíssima reflexão sobre os valores do Homem e da estrutura hierárquica do poder, alimentada pelo ódio e pelo egocentrismo de todas as classes que o compõem. E o espectador poderá sentir-se meio perdido, à partida, com os múltiplos caminhos que a história vai tomando, mas é impossível não se deixar impressionar pela maravilhosa animação e a enorme atenção ao detalhe e às emoções que Miyazaki, mais uma vez, demonstrou na construção desta produção. Não sendo um dos filmes mais sublimes do realizador, é uma das suas histórias mais intemporais e, ao mesmo tempo, extravagantes, devido ao lado épico utilizado para acentuar a oposição dos homens contra os animais. E há aqui uma das mais belas bandas sonoras dos estúdios Ghibli, composta por Joe Hisaishi, eterno colaborador de Miyazaki e de outros realizadores, como Takeshi Kitano.
Apesar do enorme êxito que obteve no Japão, A Princesa Mononoke não conseguiu, no início, conquistar de uma forma tão gigantesca, os mercados do resto do mundo – mas fez com que os estúdios Ghibli começassem a ganhar a atenção de outros públicos. Em Portugal estreou-se uma cópia dobrada… em inglês, uma ridícula proposta falhada da Miramax, distribuidora dos filmes dos estúdios Ghibli no ocidente, e que foi comandada pelo célebre autor de BD Neil Gaiman, que tentou ser o mais fiel possível ao espírito original (no entanto, não conquistou o núcleo de fãs dos estúdios Ghibli no país).
E se adaptar este filme para a nossa língua já seria algo inconcebível (porque estamos habituados a ver dobragens apenas em animações para os mais novos), mais estranho foi estrear cá não a versão original, mas a tradução criada para o mercado norte-americano, que perdia grande parte das subtilezas e intenções da história. Assim, e apesar dos pequenos coros de protesto sobre esta decisão (um processo que foi muito bem relatado pelo site CineDie), os espectadores portugueses só puderam descobrir A Princesa Mononoke no grande ecrã através das vozes de Billy Bob Thornton, Minnie Driver, entre outros atores de Hollywood.
A primeira edição nacional do filme em DVD incluiu apenas essa versão dobrada. Só vários anos depois é que a mesma distribuidora decidiu lançar a versão japonesa, numa edição com as duas opções áudio – no entanto, as legendas correspondiam apenas à tradução da dobragem, que tem bastantes distinções em relação à original. Finalmente, a Outsider Films lança agora uma edição somente com o áudio japonês e com legendagem correta. A ausência de qualquer extra (nem podemos selecionar o filme por capítulos!) é recompensada por podermos encontrar uma edição com grande qualidade de imagem e som, superior às duas anteriores, e é a primeira que nos permite, finalmente, visualizar A Princesa Mononoke da melhor maneira. É uma de muitas reedições de filmes dos estúdios Ghibli que têm sido feitos pela Outsider, e que nos permitem regressar, ou descobrir pela primeira vez, um legado inesquecível na História do cinema.
Vale a pena ainda acrescentar que, mesmo sendo A Princesa Mononoke um dos seus trabalhos mais reconhecidos, o talento do seu realizador conseguiu abranger outros interesses que resultaram em tantos outros títulos admiráveis. Hayao Miyazaki é hoje um ícone para várias gerações graças a estas histórias, mais sérias na sua composição da fantasia, que continuam a manter o seu impacto. Mas vale a pena recordar que o realizador foi sempre mais multifacetado do que as generalizações injustas da opinião pública permitem compreender. Porque o autor deste filme foi também o mesmo de Totoro, uma das mais belas obras para a infância, e de um canto de cisne formidável, estreado entre nós este ano, e cujo drama realista, pouco habitual em Miyazaki, não agradou a muitos dos seus acérrimos fãs: As Asas do Vento.
A nova edição em DVD do filme “A Princesa Mononoke” é distribuída pela Outsider Films.

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Na minha modesta opinião, é “apenas” a maior obra-prima do mestre dos mestres da animação…
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