Trocar de corpo não resolve tudo
Texto: NUNO GALOPIM
Vencer a morte e continuar, nem que habitando um outro corpo, é sonho certamente antigo e não é de estranhar que a ficção já o tenha materializado várias vezes, entre as páginas de livros e ecrãs de cinema. Outro/Eu (Self/Less no original) não navega por isso em águas nunca antes visitadas. Mas ao trazer a bordo um realizador como Tarsem Singh – que em filmes como The Cell e The Fall deixara evidente a expressão de uma marca autoral – e um elenco com nomes de peso como os de Ben Kingsley, Matthew Goode ou Ryan Reynolds, poderia sugerir que viria dali um episódio a ter em conta neste filão habitualmente aparentado com os terrenos da ficção científica. Mas a verdade é que depois de um lançamento da trama em registo de mínimos olímpicos, Outro/Eu apanha a curva errada e transforma-se num banal thriller de ação, onde não falta um ou outro twist, mas daqueles que não gastam muito o cérebro.
O filme tem algumas das suas primeiras cenas rodadas nesse monumento ao mau gosto para muitos dólares que é a Trump Tower. É ali que vive um magnata do imobiliário nova-iorquino (Ben Kingsley), que sabe como esborrachar um qualquer novato que sonhe ser concorrência durante um almoço, antes mesmo da chegada dos hors d’oeuvres, mas que é incapaz de comunicar com uma filha que trabalha numa ONG num prédio pardacento e não tem como travar um cancro cujas metástases se espalharam e não lhe dá mais de seis meses de vida. Sim, a imaginação já não era abundante por aqui… Um cartão de visita leva-o a uma discreta empresa que vende novos corpos jovens e saudáveis a quem tenha dinheiro para pagar a operação que garante a passagem das memórias e consciência para aquele novo… veículo, tendo por obrigação (além da conta a pagar) a necessidade de deixar para trás os contactos com os lugares e pessoas aos quais estava habituado. Depois de uma intervenção cirúrgica, com ares de TAC meets Star Trek (na ótica do acontece com um premir de botão e não se explica, apenas porque sim), seu apartamento dourado, onde não falta uma fonte numa das salas, dá por si com novo corpo (o de Ryan Reynolds) e nome e acaba reinstalado numa bela casa em New Orleans, redescobrindo rotinas de vida noturna, desportiva e sexual como há muito não se lembrava. Há apenas um senão… Imagens estranhas invadem pontualmente a sua consciência. Como se ecos de memórias remotas, que emergem em episódios de glitch… Nada que o comprimido do doutor com modos calmos e sotaque inglês (Mathew Goode) não possa resolver com mais um frasquinho de comprimidos. Não é preciso fazer um esforço maior de reflexão para perceber que afinal o que lhe fora vendido como um corpo criado em laboratório poderá ser afinal o de alguém que antes viveu com outro nome uma outra vida… E é na vontade de saber a resposta ao quem sou eu que o milionário em corpo novo acaba por descobrir que a organização que lhe vendeu nova vida tem uma equipa de segurança maior do que a de médicos e técnicos. Porque, naturalmente, esconde segredos… E ao engrenar a mudança seguinte o filme entra num vazio sprint de ação feito de revelações, perseguições, murros e tiros ao jeito de um corriqueiro enredo light de filme de tarde de domingo.
As heranças dos universos de histórias de upload de mentes ou de troca de corpos, e até mesmo a possível materialização da velha ideia da fonte da juventude, não são aqui senão um gatilho para socos, carros amolgados e um batalhão de uma força de intervenção a cargo do doutor falinhas mansas. Ao elenco não resta senão encaixar no que o argumento pede, Ben Kingley certamente agradecendo ter sido poupado ao descarrilar completo das ideias.
Mais gritante ainda é o que parece uma quase total ausência do tom barroco e dos pontos de vista herdados do mundo dos telediscos e de alguma publicidade que tinham animado outros filmes de Tarsem Singh. Terá o realizador dado o corpo a alguém, vindo do mundo do soco, tiro e velocidade, que usou a maquineta do médico espertalhão em ele dar por isso?…
“Outro/Eu” (“Self/Less”) de Tarsem Singh, com Ryan Reynolds, Ben Kingsley e Marthew Goode, está em exibição, com distribuição pela Nos.

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