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Uma Noite de São Bernardo muito especial, com Letuce no Circo Voador

“Não vem com essa história de que sonhou comigo a noite inteira
Tenha coragem e diga que você pensou em mim a noite inteira
Não se venha valer do sonho,
Não se venha valer do sonho,
Não se venha valer do sonho,
Não se venha valer do sonho,
Tenha coragem e diga que pensou em mim a noite inteira e acordado
Acordado vale mais”

Estas são as ultimas palavras que Letícia canta na ultima canção Todos querem Amar do novo álbum de Letuce, Estilhaça. E são as primeiras palavras que se ouvem pela meia noite do dia 20 de Agosto de 2015 no palco do Circo Voador no Rio de Janeiro.

Este dia de São Bernardo assinala-se em Alcobaça. A cada 20 de Agosto esse é o feriado municipal na minha cidade. Passei poucas vezes ali esta data ou porque ou estava de férias, ou em trabalho. Ou, não estando de férias ou em trabalho, calhou estar poucas vezes em casa.

Este 20 de Agosto fui à mítica sala Circo Voador no Rio de Janeiro ver um dos mais importantes espectáculos que vi em muitos anos e achei no mínimo interessante tudo isto ter acontecido no dia do feriado de Alcobaça (mas no Rio de Janeiro).

Os Letuce são Lucas Vasconcelos e Letícia Novaes e conheci-os a 26 de Outubro de 2011 aquando dum espectáculo de The Gift no Teatro Odisseia, aqui no Rio de Janeiro. Além deles, acompanham-nos em palco o baterista Thomas Harres, o baixista Fábio Faria e o teclista Arthur Braganti.

Letícia é hoje cronista do jornal Globo, acaba de lançar o seu primeiro livro. É pensadora, opinion maker, actriz, mas é no palco que se revela na sua plenitude.

Lucas Vasconcelos é um dos mais talentosos músicos que conheci e a sua humildade é apenas proporcional ao seu imenso talento bem como à abertura estética e artística. Multi-instrumentista, toca com vários projectos, é compositor de música para várias peças de teatro e produtor musical.

Vi o Lucas e a Letícia actuarem como Letuce umas três ou quatro vezes desde que cheguei ao Rio em 2012. Vi o Lucas Vasconcelos tocar com Lucas Santtana no Oi Futuro Ipanema – sala onde toquei também com The Gift e onde vou ver muita da nova música brasileira . Vi o mesmo Lucas Vasconcelos apresentar o seu primeiro disco a solo no Studio RJ também aqui em Ipanema, numa célebre noite de dilúvio. Vi a Letícia Novaes a tocar várias vezes com o seu projecto “Tru e Tro e sua corja” que conta com a participação de Arthur Braganti, também teclista dos Letuce já há uns anos.

Por aqui conseguimos entender que cada um dos intervenientes no projecto Letuce tem outros projectos artísticos e a última vez que estive com o Lucas Vasconcelos foi exactamente em Lisboa onde estava numa residência artística a desenvolver a música para um projecto de teatro/dança/performance com uma artista brasileira de nome Carolina Bianchi. E aí mostrou-me o seu magnífico novo disco a solo, entretanto já editado.

O novo disco Estilhaça é produzido por João Brasil – um carioca que se formou no Berklee College of Music onde estudou arranjo, harmonia, canto, electroacústica, jazz, musica clássica e é hoje um dos mais prestigiados DJs do Rio de Janeiro. Saiu há uma semana e mostra que, ao terceiro disco, a banda refina uma estética que hoje tem uma voz própria que pode ir dos anos 70 até 2020!

Este disco foi apresentado no Circo Voador e apesar da banda ter tocado na mítica sala como primeira parte dos Air ou em colaboração com outros artistas durante os últimos anos, a sua estreia oficial como headliner nesta sala da Lapa aconteceu apenas agora, ao fim de três discos editados e com oito anos de carreira.

Como é possível que só agora isso aconteça?

“Porque a cidade é provinciana”, respondia-me um amigo da banda.

Talvez seja provinciana, mas não importa saber porque razão nunca tocaram aqui antes, mas sim valorizar o que se passou nesta sala com o primeiro concerto dos Letuce no Circo Voador em nome próprio.

A banda convidou Lucas Santtana para cantar com Letícia e para meu espanto, Lucas cantou três canções dele, tocadas pelos Letuce. É impressionante até onde vão as verdadeiras colaborações artísticas deste lado do Oceano. Alguém imagina isso a acontecer regularmente em Portugal?

Céu chegou passado um pouco – nova artista brasileira já com nome firmado, com quatro espectáculos no Circo Voador no currículo e algum êxito alem fronteiras, especialmente nos Estados Unidos – e canta em dueto com Letícia uma canção do novo disco de Letuce. Cantam Bob Marley e uma versão deliciosa de Enjoy The Silence dos Depeche Mode.

Alem das versões que Céu e Lucas Santtana trazem para o espectáculo ainda se toca Raul Seixas numa canção em inglês que a banda gravou no novo disco, entre outros autores brasileiros que escreveram letras ou compuseram músicas. Letícia disse em palco “que um dia vai querer tocar um concerto com duração duma semana onde apresentam todas as versões que ela e Lucas tocaram durante todos estes anos”… E concluímos que realmente esta noção de arte e entretenimento “conjunta” esteve, está e estará no ADN dos artistas brasileiros novos e mais antigos.

Já aqui escrevi vários nomes de vários artistas que colaboram entre si, tocam músicas com uma sinergia e cumplicidades que é ainda difícil ver neste cantinho à beira mar plantado, de nome Portugal.

Uma vez num concerto que fizemos no Coliseu de Lisboa em 2001 convidamos o Fausto e tocamos com ele a canção Um Sonho Acordado e reconheço que foi um momento único na nossa carreira. Mas agora, passados 20 anos desde o inicio de The Gift, tenho pena de não termos tido a iniciativa, a abertura e a coragem de termos colaborado mais com outros artistas. Nunca é tarde…

Havia há uns anos uma iniciativa da Antena 3 de nome “Quinta dos Portugueses” onde a cada quinta-feira a rádio apenas tocava música nacional e existiram vários eventos ao vivo, mas sempre me pareceu mais apropriado a denominação “quintinha de cada português” pois éramos pouco evoluídos para saber aproveitar o momento para a partilha, para evoluir em conjunto.

Sei que uma nova geração portuguesa está genuinamente a colaborar, tocar e partilhar experiências em palco e em disco e nunca se perde nada em sermos artisticamente evoluídos nesse particular.

No final do concerto no Circo Voador um músico do projecto paralelo de Letícia “Tru e Tro” – Thiago Vivas – explicava-me que o filósofo Empédocles conhecido por ser o criador da teoria cosmogénica dos quatro elementos clássicos (água, terra, ar, fogo) que influenciou o pensamento ocidental até meados do século XVIII, criou uma teoria onde defendia que as forças tanto podem criar elementos ou separá-los.

Explicava-me ele que quando as forças aproximam e criam elementos, geram aquilo a que Empédocles chama “Amor”. Quando as forças separam ou repelem, o filósofo chamou ao fenómeno  “Discórdia”.

E basicamente é isso que se passa na arte brasileira há muitos anos de forma harmoniosa e com Amor.

Artistas a aproximarem-se, a trabalharem juntos com “Amor” evitando assim a “discórdia”, a “disputa” e escolhendo serem evoluídos ao contrário de muitos de nós em Portugal.

A palavra “evoluído” é o mínimo que se pode utilizar para descrever o que se passou ontem no palco do Circo Voador. Mas há mais… Puro, genuíno, artístico, emocional, sincero são outras palavras que também ajudam a entender o que se viveu ontem na Lapa.

Ver uma banda apresentar um disco novo, tocado pela primeira vez com esta energia, confiança e segurança só pode ser uma inspiração. Mas depois de duas horas seguidas com vários encores que nunca chegaram a ser, porque a banda nunca saiu verdadeiramente de palco, fiquei com a sensação de que vi um dos melhores espectáculos da minha vida.

A sério! Assim, tal qual!

Tive a felicidade de ver centenas de espectáculos em todo o mundo, vi artistas dos cinco continentes, mais ou menos consagrados e, sinceramente, lembro-me de ter sentido esta sensação de quase levitação apenas num dos primeiros espectáculos do Beck no Coliseu de Lisboa que me marcou para sempre.

E porque foi este um dos melhores espectáculos da minha vida?

Dizem que o Circo Voador é mítico porque aqui passaram as melhores bandas brasileiras e estrangeiras durante três décadas. E que tem uma mística especial. Há três anos que vou regularmente ao Circo Voador e já aqui vi seguramente umas largas dezenas de concertos. Mas apenas um chega perto da magia que os Letuce atingiram esta semana: James Blake em 2012 noutro célebre domingo de dilúvio no Rio de Janeiro.

Não sei o que se passou desta vez naquela sala. Que energia tomou conta do lugar? Que misticismo ali aterrou durante cento e vinte minutos? Mas sei que a estética, a emoção, a entrega de Letícia e de todos os músicos fez-me acreditar que a música ao vivo ainda é e tem de ser um refúgio especial desta arte maior a que chamamos Música.

Não são apenas as canções que se tocam e como se tocam, ou como se canta ou interpreta. A sensação de estar a ver e a vivenciar Arte no seu estado mais puro, vai muito para além do que se toca ou do que se ouve e entra no dominio do sensorial. Na essência não se consegue explicar…

A performance de Letícia neste concerto só pode ser encarada como um manual de “como estar em palco” de entrega visceral, de prazer e de celebração.

Não sou crítico de música, nem uma pessoa muito critica. E consigo ver sempre algo de positivo em tudo o que diz respeito à arte e especialmente na música. Mas no fim do espectáculo vi uma amiga que tem esse condão de ser mais cruel nas críticas, que me disse que “já estava descrente da nova música brasileira até ter assistido a este espectáculo”

Eu não sei se a música brasileira está assim tão má ou tão boa, se este disco dos Letuce é realmente o melhor do que se está a fazer no Brasil, ou se estes meus amigos vão algum dia conseguir repetir a energia que desta vez viveram no Circo Voador. Mas da minha parte eu sei que não vai ser fácil voltar a assistir a algo assim tão intenso nos próximos tempos!

Quando se fala das grandes noites do Circo Voador, se alguém for intelectualmente honesto, terá de colocar este primeiro espectáculo dos Letuce, no mínimo, como um dos mais emblemáticos e energéticos desta década, marcando um tempo e um momento do Rio de Janeiro.

Lembro-me bem da primeira vez que tocámos na Aula Magna e no Coliseu de Lisboa em Junho e Novembro de 1999 e senti algo semelhante no final deste espectáculo. Há um momento na vida das bandas em que tudo o que se trabalha durante muito tempo finalmente chega. E onde recebemos em dobro.

Ontem foi esse o momento dos Letuce onde a comunhão entre artistas e publico era total. Eu estive lá e não me esquecerei desta noite. Nunca!

Aos 40 anos, tendo uma banda com 20 anos de carreira, sei que fui novamente tocado por uma mística especial e apenas sei que saí ontem do Circo Voador profundamente inspirado e agradecido.

Obrigado Letuce’s !

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