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Years & Years e o secretismo da vivência queer

Texto: JOÃO MOÇO

O primeiro álbum dos Years & Years, “Communion”, traça um retrato acutilante das peculiaridades das relações queer.

Há uns anos convidaram-me para participar num debate informal e “moral e eticamente sério”, escreveu-se na altura, sobre essa “ciência impossível” que é a de “intuir a transparência e o benigno na música”. Inevitavelmente a conversa acabou por ir dar à possibilidade de uma avaliação moral e ética da música, o que pode implicar um juízo de valor sobre a(s) pessoa(s) que se está a ouvir. Voltar a este tópico daria num discurso interminável, mas lembrei-me desta questão a propósito do primeiro álbum dos britânicos Years & Years, Communion.

Como é que o conhecimento de aspectos da vida privada do(s) músico(s) influencia a forma como se ouve a música que ele(s) produz(em) e o seu julgamento? Dependendo do teor desse conhecimento e da forma como ele enforma as canções do dito cujo, tudo isso vai também moldar a sua posterior avaliação.

No caso dos Years & Years, que influência tem em mim saber que o vocalista do trio, Ollie Alexander, é gay, e de que forma é que isso levará a uma série de projecções da minha pessoa a partir do momento em que começo a julgar as suas canções? Que essa influência seja cabal parece-me inevitável. Quando a forma de desejar o outro não passa pelo filtro heteronormativo, a consequência passa, ainda hoje, por algum grau (maior ou menor, dependendo de cada caso, cada personalidade, cada contexto socioeconómico) de reclusão face ao todo que o rodeia.

Mas o ser humano é um ser social, daí a necessidade que tem de se ver um pouco de si nos outros. Daí que as minhas vivências enformem, em grande medida, a forma como neste caso oiço e apreendo as palavras de Ollie Alexander, buscando nelas também uma espécie de espelho que atenue o confronto com a própria realidade. Até porque um esforço de reflexão sobre as especificidades do que pode ser uma vivência queer acaba por ser, de igual modo, um exercício de autorreflexividade. Talvez por tudo isto cada vez mais concorde com o grandioso crítico Tim Finney (que, se o mundo fosse justo, teria muito mais espaço e visibilidade) quando escreve que em Communion:

“the songs carefully map the contours of gay sensuality, filtering lust through a variety of counterparts: not just shame, but vulnerability, self-awareness and annihilating self-abandon”.

“We only come out at night”
A mesma sociedade que, através da publicidade e da propaganda política, impele a produção e o consumo do desejo sexual, partindo de uma promoção do desejo de forma praticamente orgásmica, simultaneamente reprime e condena veemente a consumação desse desejo, especialmente de desejos marginais à norma hegemónica. A resposta a esta dinâmica de promoção/repressão passou, em parte, pela prática de cruising. Como ocupação de um espaço público onde a expressão sexual de um desejo não heteronormativo se faz valer, o cruising veio a tornar-se uma parte da construção social e do imaginário da identidade gay, acima de tudo pelo que o acto em si representa. E, claro, o seu potencial transgressor só ajuda.

À noite podem-se consumar diferentes formas de desejo sem que o outro condene e sem que a vergonha, o pudor e a culpa judaico-cristã entorpeçam as mentes e os corpos. Olly Alexander capta nas canções deste primeiro álbum dos Years & Years, de forma precisa, a representação desse desejo quando ele é o motor para a vulnerabilidade mais cabal e até para o sentimento de culpa que esse desejo potencia. E a verdade é que, em muitos casos, a vivência gay é pautada, em grande parte, por estes aspectos. Daí que a noite seja tão recorrente nestas canções. Quando as luzes se apagam e os repressores estão de olhos fechados, aí existe terreno para se poder vivenciar a sexualidade, ainda que sob a alçada do secretismo. “I remember us alone/ waiting for the light to go/ don’t you feel that hunger/ I’ve got so many secrets to show”, canta o músico no single Shine, voltando ao mesmo já no final do disco, em Memo, canção central neste álbum, onde refere “Love you in the dark,/ no one has to see”.

O sentimento de culpa intuitivamente imposto pelo outro perpassa constantemente na forma como Olly aborda as suas relações – “I’m not gonna tell nobody about you”, canta em Worship – sem, no entanto, se vitimizar. O que acontece é a exposição destas vivências e, por vezes, das inseguranças que elas espoletam. Daí a celebração de uma certa liberdade (e libertinagem) que a noite permite: “I don’t really wanna stop myself/ Nobody’s gonna tell me I need help/ are you coming over soon?/ I meet you at the darkest time”, ouve-se em Take Shelter. Já na canção Real o mesmo confessa: “I’ll do what you like if you’ll stay the night”, celebração que não esconde a insegurança que se tem em relação à prática per se: “Oh I, I think I’m into you/ How much do you want it too?/ What are you prepared to do?/ I think I’m gonna make it worse/ I talk to you, but it don’t work/ I touch you, but it starts to hurt/ What have I been doing wrong?”

“Am I defined? Oh, by the way they look at me…”
Sendo a masculinidade uma construção social que é imposta a quem nasce biologicamente homem (sendo, igualmente, uma opção para muitas dessas pessoas e para outras), a aparência e postura físicas (em todos os seus quadrantes) têm servido desde sempre como um factor para a definição estandardizada do outro. É essa a minha projeção, recordando-me de imediato que a forma como falava e andava na infância e adolescência eram determinantes para os juízos de valor que os meus pares faziam da minha pessoa. Romper com essa norma pode significar uma exposição das mais intimas inseguranças, daí que durante o moroso processo de identificação do ‘eu’ muitas vezes se passe por uma adaptação a essas normas que não nos servem. A autoconsciência quase vigilante de si mesma é uma característica basilar daqueles que são definidos pelos outros em função da sua orientação sexual e até isto Olly Alexander acaba por reflectir, mesmo que com algum sarcasmo: “Am I defined?/ Oh, by the way they look at me… I bend the truth/ and everything’s aflame, it’s all aglow/ I know that I can play that game, I fool them all”, confessa, em Gold.

Esta espécie de mapa de uma vivência queer surge num conjunto de canções pop cuja exuberância melódica repesca referências dessa mesma cultura, sem olhar a noções de “bom gosto” rockista. O já referido Tim Finney escreveu que o refrão de Worship lhe faz lembrar algumas canções da gay club pop, como On the Bible, dos Deuce, e I Found You, dos The Wanted, o que não é de todo descabido. Certos ambientes épicos do disco remontam ainda aos Erasure ou até aos Savage Garden (principalmente nas melodias vocais), mas com referências à pop house dos anos 1990 e da synthpop dos 80s como banda sonora. Podiam até ser descritos como uma espécie de Hot Chip se estes soubessem fazer reais canções pop, já que os Years & Years têm sempre como preocupação vital a criação dos ganchos melódicos mais grandiosos e até óbvios (no melhor sentido do termo).

Até por este despudor estético o trio merece toda a atenção que está a ter, mas o trunfo de Communion está, acima de tudo, na clareza das palavras de Olly, algo que dificilmente se repetirá.

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