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A estreia no romance de David Cronenberg

Texto: JOSÉ RAPOSO

Em “Consumed”, há um crime horroroso e grotesco, num enredo que envolve conspirações internacionais perpetradas pela Coreia do Norte, canibalismo e impressoras 3D muito…cronenberguianas.

A impressão 3D é um dos campos tecnológicos a demonstrar progressos mais promissores. Desde motores da Boeing impressos à escala, à preservação de monumentos Património da Humanidade destruídos em conflitos armados, as aplicações são cada vez mais significativas. E bizarras. Um exemplo, dos mais emblemáticos: Biobots, uma startup norte-americana dedicada à produção de tecido humano, demonstrou ainda não há muito tempo as potencialidades da tecnologia, imprimindo para isso uma réplica da orelha de Van Gogh.

Não será grande surpresa, portanto, que as suas possibilidades criativas façam eco no campo da literatura, nomeadamente no contexto da ficção científica. É esse o caso do romance de estreia de David Cronenberg, realizador canadiano com obra incontornável no cinema contemporâneo, responsável aliás por adaptações cinematográficas de escritores de primeira água – basta apenas recordar filmes como Crash (J. G. Ballard), Naked Lunch (William Burroughs), ou o mais recente Cosmopolis (Don DeLillo) para se lhe reconhecer uma sensibilidade literária de assinalar.

Neste Consumed, a narrativa principal anda à volta de um crime horroroso e grotesco, num enredo que envolve conspirações internacionais perpetradas pela Coreia do Norte, canibalismo e impressoras 3D bastante…cronenberguianas. Célestide e Aristide Arosteguy são um célebre casal de académicos e filósofos franceses com obra dedicada às teorias sobre o consumo – seduzidos pela atração que os gadgets tecnológicos exercem sobres as faculdades humanas da paixão e do desejo, anunciam um novo paradigma estético no qual a beleza tecnológica aniquila o encanto do mundo natural. Naomi e Nathan, o jovem casal de fotojornalistas no centro desta narrativa, são protagonistas num admirável mundo novo onde a comunicação, primordialmente mediada por ecrãs, ocorre nas redes imateriais para lá da última fronteira, num ciberespaço que não pára de expandir os horizontes preceptivos e cognitivos da consciência humana. O súbito desaparecimento de Aristide, sobre quem recaem as suspeitas de ter assassinado e canibalizado o corpo de Aristide, exerce uma força magnética sobre Naomi, jornalista sempre em busca do mais obsceno dos escândalos mediáticos. É justamente o interesse por histórias sórdidas que incendeia a sua paixão com Nathan; ocupado com outro trabalho jornalístico em torno de doenças sexualmente transmissíveis radicalmente obscuras, acabará por ver o seu caso cruzar-se com o de Naomi graças a uma coincidência que reflete o interesse do autor em expressar uma espécie de sentimento de paranoia global, onde tudo acaba por estar relacionado com tudo.

É este o pano de fundo do romance de estreia de Cronenberg, que tem na abordagem à interferência máquina-corpo um dos seus temas mais reconhecidos, e que aqui aborda com grande eficácia essa tensão especificamente contemporânea, cartografando com algum detalhe as mutações afetivas que a nova paisagem tecnológica veio trazer.

Os rituais consumistas dos aeroportos, que são como uma segunda casa para Nathan e Naomi, são motivo de uma atenção antropológica: a procura constante de uma rede Wi-Fi com um mínimo de sinal, o deambular pelas zonas comerciais livres de impostos à procura de gadgets preços reduzidos, ou o multitasking distraído que vai distorcendo a atenção entre e-mails, Skype e software de edição de imagem enquanto se espera pelo próximo voo, tornam-se os significantes de uma contemporaneidade em choque com o desejo de um consumo maquinal.

É também por isso que a referência constante a marcas assinala uma constelação de novas sensações prontas a consumir: Sony, Nagra, Apple, Canon ou Nikon, produtos cujas características estéticas e técnicas sãos discutidas com um entusiasmo que tem tanto de clínico como de emotivo, tornam-se assim extensões dos órgãos do corpo humano, efetivamente criando (e delimitando) as possibilidades do mundo físico, tão real quanto material.

O prazer de tudo isto, claro, está também na ironia que não deverá ter passado desapercebida ao leitor mais atento: a de Consumed ser um livro escrito por um realizador de cinema, que expressa de forma particularmente porosa os contornos dessa experiência tão contemporânea que é viver e desejar em função das imagens que vivem nos nossos ecrãs.

“Consumed” de David Cronenberg foi publicado pela Scribner Book Company numa edição de 320 páginas.

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