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A fuga incessante de David Gilmour

Texto: ANDRÉ LOPES

Este é o quarto registo de originais de uma das principais forças criativas da história dos Pink Floyd. Para o bem e para o mal, existem heranças face às quais se torna complicado escapar.

Quando David Gilmour se juntou-se aos Pink Floyd o propósito não era ainda o de substituir Syd Barrett, mas o de ser um quinto elemento, eventualmente tomando o seu lugar em palco quando não fosse possível ao vocalista fazê-lo. O modo errático e desinteressado face à música do grupo que Syd manifestou em 1968 acabaria por conduzir ao seu afastamento, cabendo a David o protagonismo vocal em muitas das situações daí em diante. A partir daí, a musicalidade da banda seguiu por caminhos bem diferentes dos trilhos psicadélicos de The Piper at the Gates of Dawn (1967) caminhando rumo ao rock mais elaborado, complexo e expansivo que se ouviu na década de 70, quando a popularidade dos Pink Floyd subiu de patamar. E manteve-se firme mesmo após a saída de Roger Waters, em tempos que mostravam uma banda (e uma escrita de canções) em modalidade de permanente gestão de esforços. Apesar de dificilmente resistirem a comparações com os primeiros álbuns, A Momentary Lapse of Reason (1987) e The Division Bell (1994) foram suficientes para manter o legado dos Pink Floyd bem presente na memória de muitos, já que justificaram as digressões nas quais a banda – com David Gilmour a dominar os créditos de escrita – soube solidificar a sua própria narrativa, com a ajuda em palco de grandiosos espetáculos de luz e som.

Desde então, David Gilmour persiste num distanciamento do universo da banda que o deu a conhecer ao grande público, com um conjunto de discos a solo no qual (ainda) busca uma forma de se diferenciar daquilo que ficou para trás. No anterior On a Island (2006) encontrámo-lo sem norte, procurando fazer-se ouvir por entre um alinhamento onde aventuras atmosféricas coexistem ora com tentativas de reanimação de um rock datado, ora com divagações acústicas desorientadas. Com Rattle That Lock, o pavor do passado parece ter desaparecido, sendo este aliás assumido desde início com 5 A.M. . E se já o ouvimos tocar guitarra “desta” maneira vezes sem conta, também será verdade que esta forma de traçar melodias com o instrumento é-lhe quase exclusiva. A faixa que dá nome ao álbum, esquece-se de tudo o resto com uma produção que destaca o baixo elétrico e que ainda assim consegue enquadrar um solo de guitarra, sem cair nas vertentes de autoadmiração tão típicas das formas como o rock progressivo era pensado nos anos 70, até eventualmente se tornar numa paródia de si mesmo.

Felizmente, Gilmour soube aqui unir um conjunto de faixas que se entrelaçam com o recurso a momentos instrumentais em que, sem espalhafato, se exercitam as teclas e as noções de atmosferas sonoras. No outro polo do espectro, Dancing Right in Front of Me e The Girl in the Yellow Dress acabam por dar azo a pequenas incursões que não perdem de vista uma sonoridade próxima do jazz mais convencional; já In Any Tongue não nos deixa esquecer as aptidões do músico para pensar em canções a partir de uma sonoridade dramática que não dispensa a aliança permanente entre guitarra acústica e os sintetizadores.

Today e And Then fecham o disco de forma quase dissonante: se na primeira nos cruzamos com uma inédita (mas muito temporária) elasticidade quase funk-via-David-Bowie, na segunda regressamos ao ponto de partida. Uma faixa que é um solo de guitarra adornado, ou um solo de guitarra adornado que é uma faixa, enfim, a ordem pouco importará a quem se comprometeu com David Gilmour ao longo de uma vasta carreira, que encontra em Rattle that Lock uma breve síntese, um ponto de situação. Longe de essencial, este é um álbum em que se prega para os convertidos: ao assumir que se conhecem todos truques à partida, acaba por haver ainda espaço para momentos que surpreendem, mas que não deslumbram.

David Gilmour
“Rattle that Lock”
Sony Music
3 / 5

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