Canções de um outono perfeito
Texto: ANDRÉ LOPES
Não será propriamente difícil recordar o fulgor artístico que se fazia sentir em Lisboa no início da presente década. Figuras que interpretavam as canções que eram por si escritas, em regime singular ou não, surgiam ou reapareciam dia sim, dia não. 2009 foi o ano em que a popularidade de B Fachada ganhou ímpeto maior, enquanto Samuel Úria cativava finalmente as atenções que pouca importância lhe deram por alturas da estreia. A Flor Caveira parecia renovada e tudo fazia para anunciar um novo advento da música popular portuguesa que nunca se cumpriu nos termos por si talhados. Pouco tempo faltava então para que as bandas da Cafetra se tornassem ruidosas o suficiente. Por entre a azáfama, 2009 trouxe também o primeiro disco de Luís Gravito enquanto Cão da Morte. Um ano depois, Trovas Intravenosas expandia as possibilidades sonoras de um projeto alicerçado na vivência pessoal de um jovem artista em Odivelas. O resto é sabido e temo-lo presente: Canção Inacabada, Mal Dormido ou Casal do Chapim são faixas a partir das quais se torna simples perceber quer a versatilidade de Luis enquanto autor, quer a sua aptidão para a escrita de melodias que sendo tão afáveis, não têm medo de se integrar em composições aventurosas.
O Fim de Verão (2013) tornou-se o seu disco mais marcante sob o formato de incursão desconcertante a território mais experimental: sintetizadores, samples e ritmos surgiam cercados de uma melancolia requintadamente melódica. Voltas e Casal Boss foram as faixas do Verão de 2013 ainda que pouca gente se tenha apercebido. A Cara d’Anjo poucos conseguirão escapar.
Agora enquanto Luís Severo, as canções têm muito de novo, apesar da diversidade patente na totalidade da discografia editada enquanto O Cão da Morte. Ainda é Cedo é, para além da primeira faixa deste álbum, o momento em que as noções que costumávamos reservar para caracterizar a música deste autor são abaladas no melhor sentido possível. Com um modo de cantar que foi aprimorado nos últimos tempos, Luís encontrou um timbre e uma forma de interpretação que – para além de por vezes se aproximarem perigosamente de B Fachada – lhe garantem o suporte ideal destes versos. Ora lânguidas, ora voluptuosas, as palavras nas quais o seu autor encontrou conforto deixam-se escrever em redor de vivências e reflexões sobre a energia das relações e do eu. Mais do que estritamente biográfico, Cara d’Anjo tem a ambiguidade suficiente para que quem escute se encontre por aqui espelhado.
E se este é um álbum cuja escrita remete para dinâmicas e ânsias típicas dos relacionamentos pessoais, a música que se faz escutar é em si mesma palpavelmente indicada para uma banda e para um palco. Canto Diferente e Nita são de uma tão fácil audição que por vezes se torna constrangedor pensar nas razões inconcebíveis por que Luís Severo nunca se tenha destacado no panorama musical português, já que a facilidade no que toca à escrita já não é de agora. O mérito é seu, mas o reconhecimento real é continuadamente adiado. Ainda assim, Cara d’Anjo não desespera por conquistar por via de facilitismos: Vida de Escorpião leva à tona a afinidade por um diálogo noturno e lúbrico entre o canto e sintetizadores pouco dados à luminosidade.
Um álbum de consolidação de ideias sobre o que ficou feito para trás, mas essencialmente um manifesto sobre a deturpação de expectativas e o seu consequente realinhamento, Cara d’Anjo é de audição urgente e recompensará aqueles e aquelas que o façam, quer se demorem ou não.
Luís Severo
“Cara d’Anjo”
Gentle Records
4 / 5

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