Últimas notícias

A Sombra dos Caçadores

Texto: RUI ALVES DE SOUSA

“Feras Humanas” é uma das obras primas do realizador Fritz Lang, que chega agora ao formato DVD, pela primeira vez em Portugal.

Uma caça ao homem ou uma caça à liberdade, num mundo povoado pelo ódio e pela destruição? Feras Humanas tanto pode ser a primeira coisa (motivada pelo hobbie do protagonista, o Capitão Thorndike, adepto da caça desportiva) como, metaforicamente, a outra. É um melodrama que se situa nos primórdios da II Guerra Mundial e que se desenrola entre tensões políticas e sociais, entre dois poderes e dois mundos em confronto. Uma aventura geopolítica, na corda bamba entre a democracia e o totalitarismo, que denuncia um mal que a generalidade do cinema americano ainda não tinha coragem de evidenciar com mais clareza: o nazismo e o que havia para além da propaganda no regime de Hitler.

Numa época em que os EUA ainda não queriam envolver-se na guerra, situação que se refletia na posição neutral dos grandes estúdios, alguns artistas decidiram contrariar as intenções de um sistema que lhes deu fama e fortuna. Em Hollywood, artistas dotados de uma enorme coragem fizeram frente ao terror do nazismo que começava a ser divulgado em todo o mundo. Vale a pena recordar que um ano antes de Feras Humanas houve Charles Chaplin e o seu O Grande Ditador (1940), sátira feroz a um sistema totalitário que, quando estreou, foi visto com maus olhos por um país ainda dividido na questão da guerra. Mas 75 anos depois, podemos comprovar como a força emocional e crítica do filme ultrapassou gerações.

O filme de Fritz Lang é também paradigmático de um tempo conturbado para os grandes estúdios de cinema. A postura afirmadamente anti-nazi deste cineasta alemão, que se refugiou em Hollywood para escapar aos desígnios do regime (ao recusar a proposta, na década de 30, de ser o cineasta do regime), continua a tocar os espectadores modernos pela sua enorme precisão. Se bem que não seja um título tão celebrado como o de Chaplin, é um thriller excecional, com grandes interpretações e uma mise-en-scène impressionante: desde a primeira sequência, silenciosa e enigmática em que Thorndike se prepara para assassinar o Führer (ou não?), até ao confronto final com o Major nazi (George Sanders), passando pela química entre o protagonista e Jerry (Joan Bennett) a mulher que lhe salva a vida e que por ele se apaixona. Não há figuras de cartão nem estereótipos aqui: Fritz Lang humaniza o bem e o mal, e o espectador acompanha as peripécias de um personagem cujas verdadeiras intenções ficarão por revelar até ao desfecho.

Tudo é magnífico na construção cénica e visual do filme, um fascinante alerta contra a ameaça que, pouco tempo depois, começaria a preocupar seriamente os EUA. O que levou a uma súbita viragem na própria Hollywood, que de uma posição conformista a evitar tocar em Hitler, começa a incentivar a produção de histórias contra o führer (não nos esqueçamos que o clássico Casablanca é do ano seguinte a Feras Humanas, e que foi uma produção popular que se tornou, para o público da época, um símbolo da luta contra o nazismo).

Será que as feras estão no lado dos aliados ou no dos opositores? O que sabemos é que a caça é uma constante no filme, passando de uma simples tentativa (acidental?) de atentado contra Hitler para a perseguição do protagonista no seu país de origem, país esse que impede que se veja envolvido em tal acontecimento – o que pode colocar em causa as relações diplomáticas (já fragilizadas) entre a Grã-Bretanha e a evolução da Alemanha totalitária. Poucos querem meter as mãos no fogo para salvar a pele ao Capitão Thorndike. Mas um mal maior – a pátria e o destino da Humanidade – podem estar em jogo, ao longo de uma história atribulada que, com o tempo, não ficou demasiado demarcada pela propaganda (ao contrário, por exemplo, de muita da produção de Hollywood posterior, como o discurso final de Correspondente de Guerra, de Alfred Hitchcock).

Numa homenagem a João Bénard da Costa, a Alambique lançou uma caixa com oito dos seus filmes preferidos, incluindo as introduções e conclusões por ele apresentadas no ciclo que preparou para a RTP, No Meu Cinema, no final dos anos 90. Este é um desses títulos, que se junta a uma seleção que inclui também Jean-Luc Godard, Robert Bresson, Michael Powell e Emeric Pressburger, Boris Barnet, Ingmar Bergman, Jean Renoir e Luchino Visconti. Feras Humanas é apresentado numa belíssima transferência digital, que preserva toda a grandeza da cinematografia original. O espectador tem a oportunidade de ser acompanhado por Bénard no início e no fim do filme, com algumas ideias-chave surpreendentes sobre a narrativa e as personagens.

Man Hunt (1941)
Realizador: Fritz Lang
Elenco: Walter Pidgeon, Joan Bennett, George Sanders
Distribuidora: Alambique (DVD)
5 / 5

Deixe um comentário