Um reencontro com memórias de Jean Cocteau
Texto: NUNO GALOPIM
Após a primeira trilogia de óperas retrato – Einstein on The Beach (1976), Satyagraha (1980) e Akhnaten (1984) – Philip Glass assinou algumas novas experiências para os palcos de ópera sem nelas procurar um fio condutor entre si. De resto, desde então, só por duas novas ocasiões vimos o seu trabalho para o palco talhar mais do que uma ideia de uma fonte ou denominador comum. Uma delas, entre 1988 e 1997 quando criou, respetivamente, The Making of The Representative For Planet 8 e The Marriages Between Zones Three, Four and Five, ambas nascendo diretamente de livros da série Canopus in Argus, da escritora Doris Lessing (e nenhuma delas até hoje editada em áudio ou vídeo). A outra quando, entre 1993 e 1996, criou uma segunda trilogia tendo como ponto de partida a obra de Jean Cocteau, focando sobretudo atenções na sua relação com o cinema. Das três óperas – Orphée (1993), La Belle et La Bête (1994) e Les Enfants Terribles (1996, esta apresentada entre nós no CCB, em Lisboa) a segunda representa a mais interessante nas suas dimensões visual, musical e, também formal (já que é apresentada em sincronia com uma projeção do filme, trocando as falas dos atores por linhas cantadas, ao vivo, em palco). La Belle et La Bête foi a primeira a conhecer edição em disco, ainda nos anos 90, pela Nonesuch, os registos de Orphée e Les Enfants Terribles tendo chegado mais tarde, no catálogo da Orange Mountain Music, editora do próprio compositor.
Agora, passados 21 anos sobre a estreia de La Belle et La Bête, chegam a disco uma série de transcrições para piano de alguns momentos da ópera, numa interpretação de Michael Riseman, colaborador de longa data de Philip Glass. Dispensando as imagens do filme que Jean Cocteau realizou em 1946 e que serviam de base narrativa, a definição de personagens e até os tempos dos acontecimentos cénicos a toda a ópera, este corpo de transcrições surge na linha de uma série de abordagens instrumentais à obra de Philip Glass como a que o mesmo Michael Riesman realizou há alguns anos sobre reduções para piano da música orquestral da banda sonora de As Horas ou, relativamente a mesma mesma trilogia de óperas, Paul Barnes apresentou em disco em Orphée Suite (2003).
Historicamente a trilogia de óperas dedicada a Jean Cocteau é contemporânea de um aprofundar do trabalho orquestral de Philip Glass que, só com a chegada dos anos 90, assinara a sua primeira sinfonia. As transcrições para piano de elementos de uma ópera pensada para vozes e uma orquestra de câmara acentuam a demanda de um certo lirismo que começava a ganhar forma na música de Glass que, ao mesmo tempo, se distanciava cada vez mais dos primados do minimalismo que ajudara a definir nos anos 60 e 70 e que ainda se manifestara evidente em algumas composições orquestrais e de música de câmara nos anos 80. As peças agora transcritas para piano revelam contudo caminhos bem distintos daqueles que Glass entretanto começara a explorar em composições instrumentais como as que, na reta final dos anos 80, apresentara em Solo Piano, que por sua vez abrira caminho rumo ao livro de “estudos” que mais tarde completaria.
Bem interpretada por Michael Riesman, esta música não deixa contudo de nos devolver ao universo do (já vasto) repertório operático de Glass fazendo-nos lembrar que, tal como as duas óperas baseadas em textos de Doris Lessing, O Corvo Branco (com libreto de Luísa Costa Gomes e com estreia em Lisboa em 1998) é hoje das raras obras de Glass para palco ainda sem edição em disco.
“Beauty and The Beast”, de Philip Glass, com Michael Riesman (piano), tem disponível em CD pela Orange Mountain Music e tem ainda edição digital via iTunes.

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