Últimas notícias

Nem sempre a memória é coisa fácil

Texto: NUNO GALOPIM

O realizador Barbet Schroeder regressa a Ibiza 46 anos depois de “More” para apresentar em “Amnésia” uma reflexão sobre o modo como os alemães lidam com as memórias do regime nazi.

Não é por acaso que, ao mesmo tempo que chega às salas de cinema o novo Amnésia, o clássico More, de 1969, o acompanha numa reposição em sala em tudo saborosa e oportuna. Se a memória de muitos se habituou a guardar dessa que foi em 1969 a primeira obra de Barbet Schroeder a música dos Pink Floyd e o facto de ter sido uma peça marcante na representação no grande ecrã de uma presença das drogas no quadro das vivências da época e da própria criação cultural dos anos 60, ao vermos o novo Amnésia, 46 anos depois, reconhecemos no novo filme um desejo do realizador em, através de More, assinalar aqui um reencontro com as suas origens. Sem Pink Floyd. Nem mesmo as drogas (que as há, embora diferentes das de 1969, no universo da club culture). Ao levar a ação a Ibiza, ao ter na música um elemento-chave da linguagem do próprio filme e a explicitar (mais ainda do que em More) relações de um passado com os tempos do regime nazi, define um conjunto de pontos de partida que, na verdade, acabariam por levá-lo ao seu melhor filme desde o brilhante Nossa Senhora dos Matadores, de 2000.

Com cenário numa paradisíaca frente de mar da ilha, entre rochedos e arvoredo, sem hordas de turistas por perto, Amnésia começa por nos revelar duas figuras de idades e experiências distintas, em comum partilhando o facto de para ali se terem mudado em busca de um recomeço e o gosto pela música. Ele é Jo (Max Riemelt), um jovem DJ que procura trabalho na ilha que, desde finais dos anos 80, é um dos focos mais ativos da club culture, mundialmente conhecida pelas suas discotecas e todo um quadro escapista e hedonista que a estas vivências se associa. Faz música, usando samples através dos quais cria loops que manipula em demandas que a inspiração e emoções do momento lhe sugerem (umas mais interessantes, outras nem por isso). Ela, Martha (Marthe Keller), tocou música em tempos. Era violoncelista, mas tal como calou a música fez silêncio a todo um passado vivido na Alemanha dos anos 30 da qual, horrorizada com as transformações em curso, acabou por fugir, deste então rejeitando tudo o que é alemão: fala inglês, não bebe riesling, não entra num Volkswagen.

Cada um desperta algo no outro… E é desse despertar que surgem, no jovem DJ, pistas para novas demandas na música, mas também na descoberta de que, mesmo passados 50 anos, há ecos dos dias de guerra que não se devem esquecer e, nela, uma capacidade para, afinal, debater o que aconteceu e o reacender da paixão pela música. Barbet Schroeder usa ainda uma terceira figura, a do avô do jovem DJ, numa breve mas pungente interpretação de Bruno Ganz, que coloca em cena uma terceira geração e, nela, memórias vividas de ações durante o regime. Em conjunto estas personagens fazem de Amnésia mais um interessante ponto de vista diferente acerca do corpo de trabalhos que o cinema tem projetado sobre memórias do nazismo, que teve recentemente em Phoenix, de Christian Petzold, outra importante contribuição.

É do fluxo de informação entre estas três gerações que Barbet Schroeder explora os planos diversos da ideia de amnésia. A coletiva, que tende a esquecer demasiadamente depressa. A pessoal, de Martha, que pode esconder até mesmo a ela própria mais do que uma mera rejeição. E depois há a outra Amnesia… A discoteca com esse mesmo nome e uma das mais célebres de Ibiza, que visitamos no único momento em que o filme escapa a Barbet Schroeder para nos colocar numa das mais insossas visões de uma noite de dança em discoteca que o cinema nos deu a ver… E não só a música não parece ser entusiasmante, como as luzes parecem atordoadas e a multidão dançante mais sonolenta do que com vontade de celebrar… Isto para não falar do manager do DJ nem do gerente da discoteca, tirados a decalque do grande livro dos clichés, e que deixam crer que ou há ali um desejo de paródia do realizador (mas não é esse o tom do filme) ou então temos aqui um belo exemplo para mostrar quão importante pode ser a figura do consultor nestas coisas. Mesmo assim há mais vida e alma na figura deste DJ do que entre as personagens, com igual profissão, desse monumento ao tédio que é Éden, de Mia Hansen-Løve.

“Amnésia”, de Barbet Schroeder, com Marthe Keller, Max Riemelt e Bruno Ganz, está em exibição numa distribuição da Leopardo Filmes.

Deixe um comentário