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Filhos da noite

Texto: DIOGO SENO

Como filmar a adolescência? As hipóteses são infindas, mas João Salaviza tem vindo a ensaiar um olhar muito próprio ao longo da sua curta mas já impressionante obra.

Montanha é o filme de uma espera, um limbo em que o protagonista, e restantes personagens, se encontram. Aliás, a forma como João Salaviza enquadra as figuras no espaço, as acções que filma, a sua preferência para revelar as personagens em cenas nocturnas, acentuam esta sensação. A vida de David está prestes a mudar. O avô, com quem morara até ao momento, está gravemente doente no hospital. A mãe, a viver em Londres, recém-chegada com a irmã bebé, fala em levá-lo consigo. Na escola, as faltas levam-no a chumbar o ano. A sua relação com o seu melhor amigo encontra-se volátil, além de terem roubado uma mota, estão ambos interessados em Paulinha, uma vizinha de David. A descoberta da sexualidade faz-se no meio do tumulto do quotidiano “marginal” em que estas personagens vivem.

Aquela que foi uma linguagem experimentada em Arena e em Rafa, encontra em Montanha mais força e impacto, uma obra que expande o olhar do realizador sem diminuir as suas qualidades.

Tal como nas mencionadas curtas, temos novamente uma representação da adolescência que resiste a generalizações e clichés. Era colocar a obra de Salaviza ao lado de variados produtos televisivos (e alguns cinematográficos) que se arrogam debruçar sobre os adolescentes, aliás, sobre o “real” ou sobre “o país”, e ficar abismado com as diferenças…

Montanha expande o olhar de Salaviza de duas formas. Em primeiro lugar, desenvolve o universo temático do realizador. A adolescência, os espaços suburbanos, os protagonistas indomáveis, irredutíveis, encontram aqui um maior espaço de respiração e uma voz mais segura. David é uma personagem que ganha vida no ecrã de forma invulgar – o que confirma também este como um excelente director de actores.

Em segundo lugar, cimenta aquela que é a linguagem visual do realizador, e leva-a para outros caminhos. Encontramos novamente os enquadramentos meticulosos, com uma exploração exemplar do espaço, os planos fixos (com os actores a saírem do enquadramento e a voltar enquanto a acção decorre) e uma maneira de filmar a noite muito própria, como espaço de deambulação, de revelação da dimensão mais íntima das personagens. Mas encontramos também uma forma mais ambiciosa de utilizar esta linguagem lânguida e de silêncios. Mencione-se, por exemplo, a panorâmica de 360º graus em que se revela o quarto de Paulinha, e, ao mesmo tempo, se adia e afasta (com pudor e “respeito”), o olhar sobre a intimidade destes adolescentes, ou o plano na discoteca em que David se abandona ao som da música e exorciza os fantasmas, a tristeza e o medo que o perseguem ao longo de todo o filme.

O sentimento de uma evolução “na continuidade” é reforçado pelo facto de encontrarmos pontos de contacto muito explícitos entre as curtas e esta primeira longa. A personagem de Rafa, interpretada pelo mesmo actor, encontramo-la aqui também, agora como o melhor amigo de David. Tanto em “Rafa” como em “Montanha” temos uma cena de “interrogação” em que apenas o interrogado é enquadrado, neste caso os protagonistas, e a figura adulta está fora de campo, só a ouvimos.

Sente-se igualmente que é o culminar deste percurso, de uma narrativa maior, sobre a adolescência, que se faz das ligações entre curtas e longa. “Montanha” é o respirar fundo antes da mudança, o percurso da personagem encontra aqui um poder emocional que dificilmente encontrará melhor expressão. Como superar o impacto da cena em que David diz a Paulinha que esta é a única pessoa que ele tem? Ou o final, revelador, em que o protagonista, filho da noite, diz à mãe que ainda é cedo e pode dormir mais?

Este cinema faz-se da proximidade da sua matéria humana, a ficção emerge, sem mácula, totalmente verosímil, sem notas falsas. Adivinha-se que o realizador conhece bem a realidade que filma. Essa disponibilidade para olhar, para se entregar ao real, para não abandonar as suas personagens insubmissas, para se pôr do lado delas, cria momentos de realismo que, paradoxalmente, se aproximam do maravilhoso. A confirmação de João Salaviza não como uma promessa, mas como um cineasta a acompanhar com atenção.

“Montanha”, de João Salaviza, com David Mourato,Maria João Pinho, Ema Tavares, Rodrigo Perdigão, Cheyenne Domingues, Carloto Cotta e Ana Cris, está em exibição, numa distribuição pela Midas Filmes.

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