Não é preciso gritar para falar de indignação
Texto: NUNO GALOPIM
É possível retratar o horror do jiadismo, a violência dos seus atos cruéis e regras repressivas e até mesmo a tensão e ansiedade que a sua presença numa cidade ocupada exercem sobre uma população outrora livre sem recorrer a frenéticas sequências de ação, com tiros e explosões e todo o desfile habitual de sangue e morte? É sim. E o sublime Timbuktu, produção franco-mautritana com realização de Abderrahmane Sissako, é por tudo isso, e pela extrema atualidade da temática que levanta, um filme da melhor colheita que 2015 viu passar pelas nossas salas que agora podemos (re)ver em DVD.
Acontecimentos reais despertaram a ideia de fazer este filme. Em concreto a execução, por lapidação, de um casal acusado de ter tido filhos fora do casamento que ocorreu em Aguelhok, no Mali, quando, em 2012, e por algum tempo, aquela região foi ocupada por um grupo jiadista que assombrou pela intolerância a tudo o que escape às suas regras, o quotidiano da população local.
A acção transporta-nos para o que poderia ser um pequeno paraíso no interior do Mali do presente. Mas deixa logo evidente a marca da presença repressiva de um comando jiadista, chefiado por figuras que chegaram de longe e não falam os dialetos locais, mas que têm já recrutas entre os operacionais que zelam pelo cumprimento de novas regras que determinam o tamanho das calças nos homens, a obrigação do uso de luvas pelas mulheres, a proibição de jogar à bola ou o silêncio absoluto perante a música. Coisa que estilhaça a alma de um povo que tem na música precisamente uma das suas mais pungentes expressões culturais.
Sem transformar a magnífica paisagem em postais ilustrados, mas integrando-a antes no contexto de uma forma que sublinha a imensidão daqueles espaços e a distância face aos domínios da ordem urbana, Abderrahmane Sissako trabalha com profundidade as personagens, através das quais o dia a dia sob o medo imposto pelo comando jiadista se entranha também na experiência do espectador. Tem particular peso aqui o olhar sobre um casal que vive, com a filha e um jovem que lhes guarda as vacas, fora da povoação ocupada. Não suficientemente longe dos que ali foram aplicar uma nova ordem. E que, como nos é dado a ver, são por vezes os primeiros a escapar a regras que eles mesmos aplicam com violência e sem perdão sobre os outros.
O filme não poupa nem no argumento nem nas imagens a exposição aos factos e consequências. Porém, expõe-nos perante a realidade com uma candura no ritmo e uma placidez nas imagens, que acentuam assim mais ainda a violência emocional e física que todo aquele jogo repressivo representa.
Nota interessante para a presença de um ancião que leva à sua voz um debate sobre diferenças entre as verdades da religião e os excessos injustificados das suas leituras extremadas que muito boa gente deveria ver e escutar para conhecer melhor este universo que passa pelas notícias mas que muitos na verdade só conhecem pela rama, resvalando facilmente para generalizações ignorantes contra as quais este filme pode ser uma boa chamada de atenção.
“Timbuktu”, de Abderrahmane Sissako, está disponível em DVD numa edição da Midas Filmes

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