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Anna Muylaert: “O machismo é tão invisível quanto as regras de classe”

Texto: NUNO GALOPIM

A realizadora Anna Muylaert falou com a Máquina de Escrever sobre “Que Horas Ela Volta” e os debates de classe e género que entretanto lançou no Brasil. O filme chega esta semana aos ecrãs portugueses.

De onde surgem estas personagens que vemos no filme. São absoluta ficção ou inspiradas em figuras reais?
A Val, por exemplo, surgiu há 20 anos, quando eu tive filhos. Na verdade, ela é a minha mãe… Nessa época eu desenhava as personagens, para tentar ver a sua existência concreta. E ainda hoje tenho o desenho da Val… Era negra. E nessa primeira versão, que se chamava A Porta da Cozinha, ela dormia na casa dos patrões e ao fim de semana ia para a dela. Tinha os filhos e era uma mãe de santo, uma negra religiosa. Ela nasceu muito da valorização da mãe. Estamos numa sociedade para a qual ganhar um Óscar é bom e criar um filho não é nada. A personagem nasceu desta noção errada de valor. E educação é a primeira coisa… O roteiro teve depois várias fases até chegar ao que filmei. Fui simplificando…

O que vemos agora no filme é muito diferente dessa ideia inicial?
No começo a Val tinha dois lados. Era a subserviente na casa e era ativa e rebelde na favela. As duas características estavam numa personagem. Aí dividi-as entre mãe e filha. Surgiram duas personagens. A Val subserviente e a filha, a Jéssica, a rebelde…

E entre elas há um choque natural…
Acabei de perceber isso. O filme vai tirando as regras debaixo do tapete e trazendo-as para cima. O que era invisível vai ficando visível. E isso acontece porque a Jéssica vai apontando o absurdo. A Val verbaliza as regras: não se pode sentar na mesa dos patrões, não pode comer isso… E quem vê o filme toma o partido. Há quem concorde com a Val e ache que a outra é uma chata… Mas chega uma hora em que a Jéssica prega uma rasteira à Val, quando entra na universidade.

O filme vinca a ideia de que, através da educação, é possível mudar uma vida.
É uma visão minha. Mas acho que o PT tem uma visão similar. O abrir das portas… Porque mais difícil do que chegar à piscina é entrar na universidade… O filme acompanha assim uma mudança social e política que aconteceu. E por isso ganhou uma força. Quando fiz a versão final da Jéssica, em 2013, ela era para mim uma utopia. E entretanto conheci Jéssicas de verdade…

A porta da cozinha, que chegou então a ser título, é de facto uma fronteira?
Normalmente a sala invade a cozinha. Aqui é diferente. E a câmara está na cozinha. Até chegar a Jéssica nem se vê a sala. E isso dá uma visão diferente do que se veria se a câmara estivesse lá.

Que impacte teve o filme no Brasil?
Muito grande. Na Europa é um filme que questiona, que debate. Mas lá é emocional, é mudança de vida. Foi um choque.

Foi importante encontrar a atriz certa para o papel da Val? Escolheu a Regina Casé…
Eu falei para ela: para mim ela é preta, branca e índia. E é uma atriz fabulosa. Eu era muito fã dela e há 13 anos que não atuava. O último filme dela chamava-se Eu Tu Eles, e era lindo. Hoje em dia ela tem um programa de TV. Ela gosta deste tema e sabia que ia respeitar esta figura. A minha personagem era baseada na babá que eu tinha. Mas a Regina tinha outras referências.

Fez uma projeção para empregadas domésticas no Brasil. Como correu?
Sempre vi este como um filme para a classe C. No Brasil o cinema está dividido entre a comédia de público e o cinema de arte. O meu filme era entendido como um filme de arte pelo mercado. E fiz essa sessão porque queria chegar lá… Achei que se elas vissem mais mil o veriam. E ficaram emocionadas. Aquilo de deixar o filho é muito comum. Aquela culpa e não saber lidar com ela. E havia aquela sensação de o filme estar a falar segredos. E de todas as humilhações que são mostradas no filme elas falaram que eram verdade, mesmo. E esse grupo passou depois a tarde inteira falando, chorando e lavando roupa suja.

O que o cinema faz diferente face ao que a telenovela mostra quando aborda questões da sociedade brasileira contemporânea?
A novela, quando mostra uma empregada, vai buscar alguém que seja linda, que parece modelo. E começa logo aí. Não vejo novelas, mas acho que as grandes questões não são sociais. São ódio, vingança, paixão… Nem sei se há o social… No meu filme a Val, a Jéssica, a patroa, é tudo gente normal. Fui a uma escola, a um debate, e uma menina chamou-me ao lado e disse-me que o que mais tinha gostado no filme era que as mulheres eram mulheres de verdade.

No filme os homens são algo apagados…
O marido da patroa é um banana, mas tem um detalhe enorme: o dinheiro é dele. E quis isso para este filme, com mulheres tão fortes e homens tão bananas. Os brancos, heteros, poderosos… Mas o dinheiro está ainda com eles. Eles estão deprimidos. Elas estão a trabalhar. Mas eles é que mandam.

Ou seja, além das questões de classe é um filme que lança também debates de género…
Sim, mas juro que não sabia… No início era a classe. Mas agora as questões de género ficaram no debate.

Apesar de haver uma mulher como presidente ainda sente esses debates de género no Brasil atual?
É presidente, mas muito desrespeitada.

Acha que vai continuar a abordar este tipo de temáticas?
Acho que sim… O normal é que o homem seja o protagonista e a mulher a coadjuvante. E neste filme isso inverteu-se. Isso gerou incómodo e comecei a falar disso, sem citar nomes nem acusar ninguém… A um nível genérico. O homem tem de aprender a deixar a mulher subir ao palco. E a mulher também tem de aprender a subir. Já bebeu subserviência na mamadeira… A mulher tem de começar a existir. E eu acabei a gerar esse debate que alastrou. Claro que adoraria fazer um filme sobre isso hoje. Porque o machismo é tão invisível quanto estas regras classistas.

O filme é o escolhido pelo Brasil para competir para o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira? É uma conquista importante para o filme?
Para o Brasil vai ser bom, principalmente porque é um filme simples… É um filme baseado numa visão política, com uma vontade de dizer qualquer coisa. É um filme de roteiro, de realização e de intérpretes. Se isso vira o paradigma é bom para o Brasil. Para as mulheres vai também ser bom. Para a minha carreira pessoal não sei… Gostaria de trabalhar no mercado de lá só que mais ninguém me chamou até agora. E já escreveram na imprensa de lá que, se eu fosse homem, já teria imensos convites. Mas não tenho… O facto de ser mulher desclassifica. Este é o meu primeiro filme político.

Sentiu diferenças na forma de reagir ao filme consoante o posicionamento político das pessoas?
Sim, claro. Um lado acha a Jéssica uma arrogante, mal-educada. E o outro acha-a uma heroína, um símbolo do Brasil e de juventude. Cada um identifica-se, no fundo, a si mesmo.

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