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Libertação social

Texto: NUNO CARVALHO

Distinguido com o Prémio do Público em Berlim e com o Prémio do Júri em Sundance, “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, é um retrato sobre a tomada de consciência da injustiça social e as promessas de mobilidade que só a educação pode realizar.

Numa altura em que pairam sobre o Brasil espectros de retrocesso (o próprio ex-presidente Lula da Silva disse recentemente que sente um “cheiro a retrocesso” na América Latina), a quarta longa-metragem de Anna Muylaert faz eco de uma mudança social e política que aconteceu mas que, tal como as conquistas democráticas em Portugal, precisa de quem as defenda e ofereça resistência às investidas justiceiras e ressabiadas de uma direita que está claramente do lado errado da história mas insiste teimosamente em levar por diante o seu papel de força de bloqueio. Em Que Horas Ela Volta?, a realizadora de 51 anos filma o contraste entre o Brasil do passado e o “país do futuro” através do choque geracional entre uma mãe, empregada interna ao serviço de uma abastada família de São Paulo, e a sua filha ambiciosa e rebelde.

O filme retrata duas gerações de mulheres de origem humilde, que vêm ambas do nordeste do Brasil. Val (Regina Casé), uma empregada doméstica de uma família paulista da alta burguesia, e Jéssica (Camila Márdila), que regressa da cidade natal para fazer os exames de acesso à universidade e se instala temporariamente na casa dos patrões da mãe. Inteligente, ambiciosa e insubmissa, Jéssica vem desestabilizar a ordem estabelecida e um código de regras tacitamente aceites ao não seguir a conduta subserviente adotada pela mãe. A presença confiante e jovial de Jéssica vai minar o equilíbrio de poder e baralhar as convenções sociais vigentes e os hábitos separatistas que Val resignadamente aceita e que dela fazem uma “cidadã de segunda classe”. Ao reclamar aquilo a que tem direito enquanto cidadã, Jéssica irá agitar e abalar o mundo de Val, que durante dez anos deixou para trás a filha para cuidar da casa dos patrões e ser uma ama extremosa para o filho destes.

Anna Muylaert, que antes de enveredar pela realização fez crítica de cinema, refere que primeiro escreveu um argumento intitulado A Porta da Cozinha, cujo enredo girava em torno da relação patrão-ama e que decorria num ambiente onírico, mas para o qual decidiu depois “adotar um tom decididamente mais realista”. E o que mais impressiona em Que Horas Ela Volta?, além da magnífica interpretação de Regina Casé (uma grande estrela no Brasil que atualmente apresenta um popular programa de televisão mas que não fazia cinema havia 13 anos), é o estilo realista, direto, cuja forma simples está ao serviço da história que quer contar, essencialmente assente em três pilares: argumento, intérpretes e realização. Se, como diz o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, o elevador social se avariou nas sociedades contemporâneas, Que Horas Ela Volta? retrata uma mudança em curso empenhada em desfazer o caráter utópico desse conceito eminentemente democrático que é a mobilidade social.

“Que Horas Ela Volta?”
Realização: Anna Muylaert
Com Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas, Helena Albergaria
Alambique
(4/5)

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