Temas cortantes e nomes consagrados em Sundance
Texto: DIOGO SENO
É o festival de cinema independente mais popular do mundo e realiza-se em Park City, no Utah. Montra sobretudo da produção independente americana, o Festival de Sundance serve de arranque ao ano de cinema nos EUA, muitas vezes lançando cineastas estreantes e as obras que serão discutidas ao longo do ano e criando coqueluches da crítica que meses mais tarde chegarão aos prémios da indústria.
O festival começou na passada quinta-feira e, até ao momento, Swiss Army Man é dos filmes mais discutidos. Não que esteja a ser um sucesso de crítica – que se dividiu entre os aplausos ao arrojo e as vaias ao mau-gosto – mas porque conta no elenco com Daniel Radcliffe (o actor de Harry Potter), numa proposta escatológica: um cadáver flatulento que desenvolve uma amizade com um náufrago (Paul Dano). Consta que o público não aguentou e foi abandonando a sala em massa.
Na sequência da controvérsia racial dos Oscares, a propósito da presença exclusiva de nomeados de pele branca para os prémios de interpretação, Sundance continuará a ser palco de debate deste tema na opinião pública americana. O festival pretende continuar a ser um espaço de diversidade criativa, com filmes de realizadores e produtores de diferentes origens. Nas palavras do presidente Robert Redford: “O objectivo principal [do festival] foi o de criar a oportunidade para novas vozes no cinema se fazerem ouvir”.
Os responsáveis pelo festival acreditam que este pode ajudar à cada vez maior necessidade de diversidade na indústria, e orgulham-se de Sundance ter sido o local de afirmação de vozes diversas (algumas minoritárias) do cinema americano, como, recentemente, Ava DuVernay (Selma) e Ryan Coogler (Fruitvale Station, Creed).

“The Birth of a Nation”, de Nate Parker
Este ano são vários e diversos os filmes a abordar ali questões raciais. O filme sensação do festival, precisamente, é a biografia de Nat Turner, o escravo que esteve à frente de uma violenta rebelião de escravos e negros livres, em 1831, contra os esclavagistas. Intitulado The Birth of a Nation (título roubado ao polémico clássico de Griffith), é a estreia na realização de Nate Parker. Recebido com uma longa ovação na estreia e críticas arrebatadas é já um marco na história do festival: foi comprado por 17,5 milhões de dólares pela Fox Searchlight, naquela que foi a compra mais avultada de todas as edições de Sundance.
O debate sobre os portes de arma continua a dividir os americanos, e o cinema documental, com um espaço de relevo em Sundance, encontra diversos títulos sobre este tema na programação: Speaking is Difficult, curta-metragem produzida por Laura Poitras (realizadora de Citizenfour), sobre o massacre de San Bernardino, em 2015, ou Under the Gun, sobre a impassividade dos legisladores americanos após tantos tiroteios seguidos, são apenas dois dos filmes que pretendem contribuir, a partir do festival, para esta discussão urgente nos EUA.

“Love and Friendship”, de Whit Stillman
Uma adaptação de um dos livros menos célebres de Jane Austen (Lady Susan), é o novo filme de Whit Stillman. Love and Friendship encontra-o de novo a dirigir Kate Beckinsale e Chloe Sevigny, as protagonistas da sua segunda longa-metragem (The Last Days of Disco, 1998). Foi recebido calorosamente, como todos os filmes de Stillman, e o interesse pelo universo da escritora talvez traga ao realizador o reconhecimento comercial que não tem correspondido ao entusiamo da crítica relativamente à sua curta obra.
Também com uma curta obra, mas amplamente reconhecida pela crítica americana, é Kenneth Lonergan. Margaret, o seu filme anterior, que não chegou a estrear nas salas portuguesas, teve uma conturbada história de produção, mas conseguiu, aquando da sua estreia, o reconhecimento que já havia recebido a estreia do realizador, You Can Count on Me. Com um hiato menor do que aquele que marcou essas duas obras, Manchester by the Sea chegou a Sundance com a atenção da imprensa já conquistada. É um drama familiar, protagonizado por Casey Affleck, um operário que se vê com o sobrinho nas mãos após a morte do seu irmão. Apesar dos rasgados elogios aos actores, e da recepção positiva, o filme não voltou a encontrar Lonergan no estado de graça com que foram recebidas as suas duas primeiras longas-metragens.
Já Kelly Reichardt, continua o seu percurso enquanto cineasta eminente da paisagem americana. Em Certain Women, novamente protagonizado por Michelle Williams, Reichardt conta a história de três mulheres (as outras duas são Kristen Stewart e Laura Dern), cujas histórias se cruzam numa pequena cidade americana. Actrizes e realizadora foram aclamadas pelo retrato cru e envolvente de mulheres à beira do sonho americano.
Em Wiener Dog, filme sobre as histórias dos diversos donos de um cão de raça daschund, Todd Solondz regressa ao seu negro universo cómico, à protagonista de “Welcome to the Dollhouse”, e ao festival no qual se estreou com o referido filme.
Michael Jackson’s Journey from Motown to Off the Wall é o segundo documentário de Spike Lee sobre Michael Jackson. Enquanto Bad 25 se debruçava sobre o terceiro álbum do músico para a Epic Records, após um início de carreira na Motown, este novo filme documenta os anos de Jackson na célebre editora e a sua transição de elemento de uma banda para os caminhos de um dos percursos a solo mais bem sucedidos de sempre.
O prolífico Werner Herzog, que, tal como Spike Lee, há anos alterna entre ficção e documentário, perdeu-se na internet. Lo and Behold: Reveries of the Connected World, é a sua nova obra, e, tal como os seus mais recentes documentários, promete uma visão idiossincrática e pouco ortodoxa sobre as maravilhas do admirável mundo da rede.
Argumentista habitual de Ang Lee (A Tempestade de Gelo, Sedução, Conspiração), James Schamus, nome forte do cinema independente americano, produtor, ex-chefe executivo do estúdio Focus Features, estreia-se na realização com uma adaptação do romance Indignation, de Philip Roth, uma história que se crê autobiográfica, sobre o crescimento de um jovem judeu na década de 50 nos EUA, e cuja adaptação valeu a Schamus entusiásticos elogios da crítica e comparações a Longe do Paraíso, de Todd Haynes.

“Christine”, de Antonio Campos
A 15 de Julho de 1974, a apresentadora Christine Chubbuck suicidou-se em directo, num dos casos mais chocantes da televisão americana. Esta edição de Sundance acolhe, coincidentemente, duas obras sobre Chubbuck. A primeira, Kate Plays Christine, é um documentário ficcional sobre uma actriz que se está a preparar para interpretar a apresentadora. A segunda é Christine, e é uma ficção da autoria de António Campos (realizador de Afterschool), protagonizada por Rebecca Hall. A actriz discreta que já trabalhou com nomes diversos do cinema, como Woody Allen ou Ben Affleck, e tem ganho elogios pelas suas qualidades de interpretação, embora sem atingir o reconhecimento público de outras actrizes da sua geração, é a intérprete sensação do festival, e a sua marcha para o reconhecimento já há muito merecido (e os prémios do próximo ano), parece ter começado.


Deixe um comentário