Um punhado de escândalos
Texto: RUI ALVES DE SOUSA
Poucos meses antes dos atentados às Torres Gémeas, a Spotlight (equipa do jornal The Boston Globe especializada em grandes investigações e reportagens, e que ainda hoje se mantém ativa) começa a explorar um tema obscuro para os media, mas que está presente na cidade há décadas. Muitos sabiam e quiseram negar a verdade. Outros tentaram falar com jornalistas, mas foram desprezados. Agora, há demasiadas provas e testemunhas. Ninguém pode passar ao lado de um problema que, tantos anos depois, ainda enche primeiras páginas em todo o mundo.
O Caso Spotlight é a construção do percurso de uma notícia, desde as investigações até à sua publicação, mais as repercussões da mesma e a sua propagação social e mediática. A Spotlight não teme as pressões do poder e das instituições, e decide atacar um alvo chocantemente global: a Igreja Católica e os casos de pedofilia, que passaram incólumes durante décadas pela parte das autoridades, das famílias das crianças que sofreram abusos, e dos próprios jornalistas. Nunca vemos a imprensa a ser tratada como se de uma divindade se tratasse (porque o erro foi também de todos aqueles que poderiam antes ter desmascarado estes sucessivos crimes, mas que não quiseram), mas são estes jornalistas que decidem pôr mãos à obra, e publicar factos chocantes que mudaram a sociedade contemporânea – e estão sempre a surgir novidades…
O filme é previsível na sua estrutura, com uma realização convencional e uma montagem não tão “automática” como se esperaria, que concede algum tempo para os atores respirarem e darem o seu melhor. Começa como se esperava e termina com as mesmas intenções que adivinhámos, mas de qualquer maneira, por mais cliché que pareça, O Caso Spotlight surpreende por ser um objeto tão acertado para a atualidade, tão bem executado para o fim que propõe: apresentar o método jornalístico sem rodeios, direto ao assunto, nunca esquecendo a humanidade dos seus intervenientes e de todos os problemas que levanta uma investigação com estas proporções. Vemos o lado dos jornalistas, dos seus conhecidos, das vítimas que decidem apoiar a Spotlight e a aparente discrição dos agressores, que passaram impunes graças ao seu enorme poder junto das pobres almas que seguem as suas pegadas e a palavra dos evangelhos. E desde o início que nos mostram que não é a fé que está em causa, mas a maneira como inocentes podem ser levados ao perigo, por causa da ingenuidade da crença e de um sistema clerical arcaico que não responde ao que pede o nosso tempo.
Poderemos já dizer que O Caso Spotlight terá um lugar com contornos semelhantes, no que diz respeito ao debate sobre a pedofilia na Igreja, ao que o filme Os Homens do Presidente adquiriu para a sua temática central (o caso Watergate): começaremos a associar estas personagens, e as suas desventuras em busca de respostas, com a realidade, bem mais chocante e preocupante do que aquilo que pudemos ver – mas tal como qualquer trabalho jornalístico exemplar, o filme não torna o seu público num mero agregado de espectadores sem capacidade de pensar, disponíveis apenas para “digerir” imagens ocas, desprovidas de qualquer identificação social ou cultural. Faz com que participemos na ação, duvidemos, sintamos o mesmo que aqueles jornalistas à medida que cada vez mais detalhes são revelados.
É o lado ficcional que nos puxa para a verdade, sem perder nenhuma substância ou cair na fórmula tão demagógica e fácil do “baseado numa história verídica”, em que muitos filmes do género se apoiam excessivamente. Não é que a narrativa ajude a mudar a forma como refletimos a complexidade dos factos, dos dramas e da psicologia de cada um dos envolvidos. Mas graças a ela (e às interpretações cuidadas e adequadas dos atores), é possível que se encontre aqui uma porta acessível para compreender um pouco de toda a conjuntura dos bastidores da Igreja, das histórias dramáticas de famílias banais, de vítimas inocentes que qualquer um de nós poderia conhecer.
E isso é impossível de contrariar, por mais que se goste ou não de O Caso Spotlight: é que se trata de um drama bem informado, admiravelmente estruturado e muito apelativo. Como todo o jornalismo deveria ser, nunca esquecendo os valores deontológicos essenciais a favor das vendas astronómicas. E esperemos que as próximas gerações possam aprender alguma coisa com estes métodos e estas “histórias verídicas”, acompanhando este de outros títulos, já clássicos e emblemáticos, sobre o funcionamento da imprensa e das suas contrariedades (não só o filme de Pakula como também o excecional O Grande Carnaval, de Billy Wilder, O Grande Escândalo de George Cukor, e A Última Ameaça, de Richard Brooks). Um brilhante retrato de um jornalismo sensacional mas sem ser sensacionalista, com as histórias de jornalistas que querem a verdade, e só a verdade.
Spotlight
Realizador: Tom McCarthy
Elenco: Mark Ruffalo, Michael Keaton, Rachel McAdams, Liev Schreiber
Distribuidora: NOS Audiovisuais
★★★★


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