Dumblonde: pop do multiverso
Texto: JOÃO MOÇO
Numa altura em que são tantos os fenómenos musicais que são reverenciados por dinamitarem as convenções pop em nome de uma forma de arte alegadamente superior, com tudo de nefasto que esta premissa tem por ainda estabelecer um tipo de fronteiras que alimenta o elitismo, é estranho que um disco como o das Dumblonde não tenha merecido a atenção crítica que alguns dos seus possíveis pares. Talvez não seja assim tão estranho, já que a dupla joga realmente com essas convenções pop, mas partindo do seu cerne, não sendo por isso um fenómeno exterior à pop que revira essas fórmulas mas com a postura distante suficiente que apraz a muitos dos arautos da opinião.
A dupla nasceu das cinzas das Danity Kane, a girl band criada sob a tutela de Puff Daddy no reality show Making the Band e que depois de dois álbuns se desmantelou, tendo regressado em 2013 já não como um quinteto, mas um quarteto, e pouco depois ficaram reduzidas a trio: Aubrey O’Day, Shannon Bex e Dawn Richard. Nesta altura já Dawn Richard se tinha afirmado como uma das mais visionárias vozes do r&b contemporâneo (pelo trabalho desenvolvido a partir de Last Train to Paris, da formação Diddy Dirty Money, mas, acima de tudo, pelos discos a solo, o EP Armor On e o álbum Goldenheart, tendo-lhe sucedido em 2015 o inigualável Blackheart). No entanto, uma desavença entre Dawn e Aubrey ditou rapidamente o fim da segunda vida das Danity Kane, que se separaram antes ainda de chegar às lojas o seu terceiro e mais seguro álbum, DK3 (2014).
Com este desfecho, e depois de experiências a solo que passaram a leste das atenções, Aubrey O’Day e Shannon Bex juntaram forças e formaram as Dumblonde, que no final do ano passado lançaram o seu primeiro álbum, homónimo. Uma obra intrigante, cujo mapeamento estético atravessa Blackout (2007), de Britney Spears, My Teenage Dream Ended (2012), de Farrah Abraham, e, arriscando talvez nesta suposição, Garden of Delete (2015), de Oneohtrix Point Never, comparação que, no entanto, não surge por uma qualquer necessidade de legitimação da obra das Dumblonde.
Daniel Lopatin, o nome por trás de Oneohtrix Point Never, chegou a sugerir que Garden of Delete era a sua tentativa de criar um álbum pop. Tentativa meio falhada, nem que seja por uma integração de resquícios do nu metal e de ambientes industriais que o aproximam de uns Nine Inch Nails o que, a espaços, cai numa agressividade estética bacoca, ainda que tenha de salientar que a forma libertária como Lopatin regurgita e trabalha estas e mil outras referências sonoras que alegadamente se oporiam seja não só intrigante, mas esteja em consonância como hoje se consome música (e tudo).
Existe algo neste espírito que vai ao encontro do que se ouve ao longo das onze canções deste Dumblonde (oiça-se, por exemplo, Eyes On the Horizon, o caso mais paradigmático nestas comparações). O disco é dominado por linguagem já bem assimiladas no contexto pop, como o EDM e o uso do autotune, só que constantemente aplicadas de uma forma por vezes algo desconexa, o que suscita uma certa estranheza (estabelecendo-se, por isto, uma ligação, mesmo que ténue, ao tão singular My Teenage Dream Ended, de Farrah Abraham), ainda que sobrevivam sempre em cada canção ganchos melódicos fortes para que a atracção a estas canções se faça pelo seu apelo pop e não por uma ideia fetichista de bizarria sonora (refira-se Love Blind, que tem um dos refrães mais cativantes da pop recente).
Todavia, é notório que o potencial comercial destes temas é francamente reduzido, subsistindo a dúvida se esse afastamento das ambições que existiam aquando das Danity Kane é propositado ou fruto das experiências aqui encetadas pelas Dumblonde em parceria com os produtores R8DIO, Dem Jointz (que esteve ativamente envolvido no último álbum de Janet Jackson, Unbreakable) e a compositora Candice Pillay.
As melodias certeiras que dominam este álbum surgem tendencialmente a partir de ângulos inesperados no contexto a que habitualmente se colocariam estas canções. Este factor é possível porque um dos pontos fortes deste primeiro disco das Dumblonde é o intricado trabalho de produção em torno das vozes de Aubrey O’Day e Shannon Bex. Um jogo de manipulações estimulante, no qual se perdem as identidades interpretativas da dupla, colocando assim as suas vozes em pé de igualdade à amálgama sonora que as circunda (Yellow Canary e Carry On, por exemplo). Sente-se, por isso, ecos do que Britney Spears fez no seu Blackout, ainda que em Dumblonde essas explorações sonoras soem mais abrasivas.
Se as Danity Kane nunca se destacaram plenamente dos demais (estiveram perto disso no último álbum), é curioso que o seu fim tenha revelado entre vários dos seus elementos existia um potencial criativo enorme. Depois de Dawn Richard ter criado a partir do r&b uma obra fora de órbita (Blackheart), agora Aubrey O’Day e Shannon Bex conseguem, enquanto Dumblonde, concretizar um portento dance pop que questiona os seus trâmites de forma invulgar.
Dumblonde
“Dumblonde”
Double Platinum, Inc.


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